Ouça a crônica de Rachel de Queiroz na voz da pesquisadora Mafalda Lalanda.
Esta noite sonhei com Portugal. Queria saber contar sonhos, porque foi um sonho bonito. O medo que a gente tem (embora na aparência se trate apenas de um sonho inocente e até lírico), o medo são os amigos interpretadores, capazes de tirar uma história de sete cabeças do sonho mais inofensivo. Hoje em dia não há quem não tenha as suas tinturas de psicanálise e não entenda de sonhos; e o resultado é que ninguém mais sonha com receio dos freudistas. E quanto bom palpite, quanta centena e milhar de sorte por culpa disso não se perderá?
Pois como dizia, sonhei com Portugal. Não via mapa, nem letreiro, nem explicação formal, mas que era Portugal, não tinha dúvida. A gente ia num barco por um rio tranquilo, muito largo e com pedras à margem. E aos poucos se avistava uma cidade ou aldeia com casas antigas, abarracadas, subindo um morro; e eram tantos os pomares que de repente o rio se afundava entre as árvores e se virava num riachinho à toa; depois já não tinha riachinho, nem barco, nem nada, a gente estava dentro de uma das casas do lugar, na sala grande com móveis pesados de talha, e umas cortinas vermelhas de veludo. E na sala estavam duas velhas e um velho, sendo que uma das velhas se sentava numa cadeira de balanço e tinha um gato branco no colo. Os três falaram comigo, e eu sei que me sentia mal por haver penetrado ali naquela sala particular e tão tranquila sem pedir licença, mas a velha de pé me tranquilizou ― talvez dissesse que era costume receberem turistas; a velha sentada não dizia nada, continuava se embalando e sorrindo. Depois os três iniciaram uma história, mas era muito aflitivo porque eu não conseguia entender quase nada do que eles diziam; só me dava a impressão de que era fala das fitas de cinema português, cujo diálogo a gente nunca sabe se compreende tão mal porque é mesmo difícil de entender a língua deles ou se é porque o aparelho de som está ruim. Aliás, lembrando bem, eles falavam mesmo com voz de cinema, tinha até uma música de fundo. E aí eu perguntava à senhora da cadeira de balanço quanto é que custava uma casa naquela aldeia ― assim bonita e antiga como aquela. E ela respondeu um preço que não recordo, mas que achei muito barato; se bem que a velha falasse em escudos ― mas decerto no sonho eu entendia de câmbio de escudos, porque só o que me espantou foi a barateza do preço. Fiz então umas contas de cabeça, calculei que vendendo isto e aquilo aqui no Brasil dava para comprar aquela casa. Sim, aquela. Com a intensidade maior da minha vida, embora eu não tivesse coragem de o dizer às velhas, assaltara-me a cobiça de ser dona da casa delas, daquela e nenhuma outra ― com aqueles móveis, e a pequena escada sumida na sombra da sala grande, e os três velhos e a cadeira de embalo com o gato branco.
Nesse ponto o sonho entrou a escurecer e a confundir, esfumou-se em fade out e não sei se acordei logo, ou se caí num sono pesado e sem consciência de nada. Só sei que me levantei de manhã com o mesmo desejo no coração, e por mais que as horas se passem ainda tenho presente na lembrança as mãos claras da velhinha, e a vista que se enxergava da janela e o soalho da casa de tábuas areadas e bem largas.
Conto este sonho à toa. Mesmo porque, diz que é tolice contar sonho. Mas diz também o povo que a gente não contando ele não acontece. E a verdade é que eu queria satisfazer este sonho, descobrir aquela casa, aquele rio, aquelas velhas. E conversar outra vez com elas, prestando bem atenção, para consertar esta angústia de não ter entendido as palavras que elas me disseram com o aparelho do som funcionando tão mal. Porque parece que era coisa importante, coisa essencial que eu ouvisse e entendesse. Depois o desejo de ver Portugal. Embora, como já foi dito acima, ninguém me dissesse que era Portugal ― não tinha placa explicando, nem vinhedos, nem trigais, nem cachopas. Só sabia que aquilo era Portugal, uma espécie de Pasárgada de identificação absoluta no meu coração. E por sinal, quando o rio se estreitava em riacho e se metia entre pomares, as árvores eram tão densas e sombrias que mais parecia a mata amazônica. Mas não adiantavam esses disfarces amazônicos, pois com árvores ou sem árvores, nem um segundo deixei de saber que aquilo era Portugal mesmo, país onde nunca estive e que talvez morra sem ver. E também agora me lembro que não teria areias ― ou teria? À margem do rio, teria praias de areia, areias de Portugal? Ou talvez não as tivesse, porque afinal de contas sonhei com rio e não com mar. E as areias de Portugal são as areias do mar.
Também ninguém pense que estou inventando um apólogo, que no fim haverá uma moral ou uma explicação. É um sonho e nada mais, naturalmente anárquico e sem sentido. Já falei que o conto à toa ― fazendo um papel que nunca fiz, imagine contar sonho, tanta tolice sem sentido. Mas me deixou melancólica e cheia de saudades, incapaz de escrever coisas sensatas, como seria da minha obrigação. E o fato é que não consigo tirar da cabeça, nem a casa velha, nem as senhoras idosas, nem o gato branco e a cadeira. Sempre fui pessoa de poucos sonhos, acordados ou dormidos. Sempre me satisfiz com o meu pedaço de pão e jamais cobicei a galinha gorda dos outros. Mas me parece que hei de morrer de paixão se não comprar um dia aquela casa. Pois tanto a casa como a sala hão de existir em algum lugar, não acredito que o meu sonho as inventasse assim, lhes erguesse as paredes caiadas, e compusesse os florões dos móveis de talha, e até as franjas de borlas das cortinas vermelhas. E as velhas, então, as velhas. Ah, esqueci de dizer que o velho sumiu, no próprio momento em que falavam a conversa que não consegui entender: de repente só se viam as duas senhoras, não havia mais o velho debruçado à janela que cheirava a jasmim. Também esqueci de contar este detalhe da janela com o jasmim. Era uma das coisas mais agradáveis dali aquele jasmim-estrela miúdo e de cheiro, cuja massa verde se amontava contra a parede do oitão, desprendendo galhos finos janela adentro. O gato não miava nem se movia; nem sequer ronronava, agora recordo bem. Quem sabe se estava morto ou empalhado? E, meu Deus, será azar sonhar com gato empalhado? O que vale é que embora empalhado ou morto, era branco e não preto. Azar de gato preto não precisa ninguém dizer, é coisa sabida e antiga. Branco, não; branco, sendo o contrário do preto, naturalmente dá sorte, vivo ou morto, que isso de vida e de morte não faz grande diferença em matéria de azar.
E pode ser muito bem que, sendo caso de intuição, ou segunda vista, ou lembrança subconsciente ― sei lá, há muitos nomes para essas coisas ― talvez alguém conheça o lugar ou as pessoas e queira me contar onde fica. Alguém que tenha paciência de ler isto tudo até o fim. Quem não tiver paciência de ler, o que é justo, mude a vista; há muita coisa no jornal, tanta colaboração de primeira; passe adiante que ninguém repara, nesse ponto o país ainda é livre, pessoa nenhuma é obrigada a ler o que não gosta, graças a Deus.