Menino jornaleiro - fotomontagem, Centro, São Paulo-SP, 1940. Foto de Hildegard Rosenthal/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Há escritores que fazem livros como casas. Erguem uma obra monumental, capaz de se sustentar por força própria, e fica. O cronista de jornal, porém, é “como o cigano que toda noite arma sua tenda e pela manhã a desmancha, e vai”. As palavras são de Rubem Braga, um de nossos mais notórios ciganos, que fez e desfez sua tenda na imprensa durante quase toda a vida.
A crônica, como se sabe, nasceu do encontro entre o jornalismo e a literatura. Na definição graciosa de Manuel António Pina, poeta e cronista português, trata-se de “jornalismo com saudades da literatura e literatura com remorsos de ser jornalismo”. Sua origem nos remete ao rés-do-chão do jornal, bem no rodapé da página, num espaço que os franceses tratavam de feuilleton – isso, o folhetim. De início, com ares de almanaque, a seção reunia toda sorte de entretenimento: charadas, piadas, receitas. Depois, passou também a registrar os acontecimentos da vida cultural da metrópole: teatro, ópera, corridas de jóquei. Grosso modo, foi da necessidade de costurar esses assuntos variados que nasceu o cronista (então folhetinista) – “uma espécie de colibri a esvoaçar em ziguezague”, como sugeriu José de Alencar.
Pois bem. Isso tudo para dizer que o jornal é mesmo a morada da crônica. Mas não é a única: sobretudo a partir da década de 1950, o cronista arranjou pouso também nas revistas semanais. Mais confortáveis e luxuosas, as revistas tinham cores, fotografias, ilustrações e davam espaços de destaque ao gênero. De todo modo, jornal ou revista, depois de lidas as páginas inevitavelmente acabam forrando gaiola e embrulhando peixe. Daí a tenda desmanchada do cigano.
Apesar do descarte programado, essa literatura ganha alcance e algum significado social, já que o jornal é, “por modesto que seja, uma bandeira de cidadania, um símbolo da aspiração coletiva”, como apontou o cronista Jurandir Ferreira ao refletir sobre Jornal e jornalismo: “Impondo a dignidade da palavra escrita, aplicando no interesse do povo a maior de todas as artes, que é a arte literária”, o jornal “dá um caráter ao meio em que circula, aponta uma comunhão nos ideais da vida moderna, inscreve a história desse povo nas conquistas de hoje e nas esperanças de amanhã”.
Em 1915, Lima Barreto publicou uma crônica anedótica sobre uma experiência menos cívica, digamos, de certo jovem jornalista: quando o rapaz ouviu de um primo que “os redatores das seções elegantes dos jornais do Rio eram muito apreciados e amimados pelas moças da alta roda carioca”, decidiu tornar-se redator de uma dessas seções a qualquer custo. Tendo já alguma experiência na imprensa da província, fundou a página “A vida chic” no jornal de sua cidadezinha. Acontece que de chique a cidade não tinha nada – “não tinha casa de chá, nem Rua do Ouvidor, nem banquetes no Assírio” –, e por isso não viu nem a cor de “carta feminina alguma”.
Desiludido com as donzelas da alta sociedade, o moço aceitou a proposta do diretor de um jornal sobre jogo do bicho, prática então iniciante mas já bem popular no Rio de Janeiro, e transferiu sua pena para a redação de O Palpite. Agora, sim, as cartas choviam: “Certo dia recebi uma, perfumada, em papel de linho, na qual me era pedido um palpite na certeza, dado na seção mais estimada. Dei-o e acertei. Ao dia seguinte, recebi da mesma pessoa um curto bilhete”. Mais do que uma mensagem de gratidão, o bilhete era um convite, com endereço e tudo: “Não sabes de que me salvaste. Amo-te muito. Vem amanhã”. De forma que... bem, o amor nasceu da página de um jornal.
O casal apaixonado não daria notícia, mas deu crônica. Até porque a matéria de imprensa, disse Otto Lara Resende em “Mas é coisa nossa”, não brota do corriqueiro: “Se um cão morde um homem, nada a noticiar. Se um homem morde um cão, está aí a matéria-prima. Cumpre apurar tudo direitinho. Se o homem foi vacinado contra a raiva. Se o cão estava quieto no seu canto, ou se partiu dele a provocação”. A crônica, sim, pode nascer de qualquer situação. Cão que morde homem, homem que morde cão, a ordem dos fatores pouco importa para o cronista, que não tem compromisso nenhum com a objetividade dos fatos.
O que com certeza não daria boa crônica é a morbidez de certas notícias. Durante as primeiras décadas do século XX, o diplomata Antônio Torres já identificava na imprensa carioca o gosto pela violência. Com ironia amarga, evocou O quinto mandamento, justo aquele que proíbe a humanidade de se matar: “O que faz supor que no Rio se assassina demais é a importância que os jornais dispensam às notícias de assassinato”. Na verdade, “o Rio é uma cidade santa”, e a culpada de todo o sangue derramado é a imprensa, faminta por manchetes chocantes. “Lá uma vez por outra o Dente de Ouro dá uma facada no Canela Seca, mas isso não tem importância. É para distrair um pouco os leitores dos jornais. De quando em vez também o Canhoto combina com o Mão de Gato um assalto a uma joalheria ou a uma casa de família.”
Chega a ser engraçado pensar que tudo não passaria de um teatro macabro entre jornalistas e criminosos, cujos apelidos folclóricos caem bem para personagens. “Se o público não ligasse importância a isso, os jornais não o explorariam”, conclui o cronista, em tom de deboche. Pobre Antônio Torres. Imagina só o que não diria se ligasse hoje a televisão...