Fonte: Antônio Torres: uma antologia. Rio de Janeiro, Topbooks, 2002, pp.141-142

O que faz supor que no Rio se assassina demais é a importância que os jornais dispensam às notícias de assassinatos. No Rio não se mata demasiadamente. Mata-se o que é possível. E não se mata mais porque não se deseja. O Rio é cidade santa. A proteção que Deus nos dispensa é escandalosa. Temos uma Saúde Pública que pouco se incomoda com a higiene, e, apesar disso, vamos vivendo mais ou menos livres de epidemias. Proteção divina.... Com o policiamento dá-se o mesmo. Guardas civis — escassos; soldados — poucos e mal distribuídos. Pois apesar disso vamos vivendo como Deus é servido. Lá uma vez por outra o Dente de Ouro dá uma facada no Canela Seca, mas isso não tem importância. É para distrair um pouco os leitores dos jornais. De quando em vez também o Canhoto combina com o Mão de Gato um assalto a uma joalheria ou a uma casa de família. Roubam algumas joias e roupas servidas e safam-se docemente. Que tem isso? Nada. Pequenos prejuízos, em comparação do muito que os criminosos podiam fazer no Rio se o quisessem. Se não fôssemos gente de boa índole, já não morava ninguém nesta cidade. E querem a prova de que somos gente boa? Basta considerar o quanto nos impressionamos ainda por ter um valente qualquer baleado um companheiro na Gamboa; e tanto nos impressionamos que os jornais abrem colunas com esse fato mínimo. Se o público não ligasse importância a isso, os jornais não o explorariam. É claro. E dessa importância que os jornais dão aos assassinatos é que parece nascer a convicção, em que estão muitos, de que no Rio se mata demasiadamente. É engano. Ainda não se mata o que se devia matar em relação à falta de instrução e de polícia. Futuramente, tenhamos fé em Deus, havemos de matar muito mais...

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