Fonte: Da quieta substância dos dias. São Paulo, IMS, 1991, pp. 117-119.

Uma cidade que não tem um jornal é uma cidade que nunca terá nada. É uma cidade sem inteligência. Lesma urbana. Falta pé e cabeça. Principalmente cabeça. Não anda nem voa, se arrasta. Quando nasce em uma comunidade a consciência de si mesma, quando nessa comunidade estala a primeira faísca de espírito público, nasce o jornal. É o primeiro sinal de que existem homens, de que o pensamento comunitário acendeu a sua forja e o trabalho vai começar. Daí por diante as possibilidades são ilimitadas. Está aberta uma porta para as ideias, quer dizer, está aberta uma porta para a civilização.

O jornal, por modesto que seja, é uma bandeira de cidadania, um símbolo da aspiração coletiva, um gesto de engajamento nas fileiras da atualidade, um triunfo sobre o ramerrão, a rotina, a marcha a ré. O jornal, impondo a dignidade da palavra escrita, aplicando no interesse do povo a maior de todas as artes, que é a arte literária, dá um caráter ao meio em que circula, aponta uma comunhão nos ideais da vida moderna, inscreve a história desse povo nas conquistas de hoje e nas esperanças de amanhã. Só as populações esmagadas, iletradas ou incapazes não precisam de jornais. Os cemitérios também não.

Por que é que até os presídios editam os seus jornais internos e os transatlânticos editam os seus jornais de bordo? É porque o jornal se tornou em toda parte um alimento indispensável para a combustão metabólica, para o ritmo e a velocidade de que o espírito humano tem de manter em cada dia, em cada hora, em cada minuto. Fome de informações, de notícias. Essas informações e essas notícias enriquecem nossa experiência, põem-nos em contato com outras almas e outros mundos e sob certo modo nos tornam livres, uma vez que o conhecimento é a mais profunda e absoluta forma de libertação. Não fosse o jornal por excelência "o pão da liberdade" ou a arma da liberdade em seu sentido mais objetivo, que é o sentido social, econômico e político. O português, colonizador e ladino, jamais permitiu que nos velhos brasis entrasse sequer uma tipografia, máquina de homens livres. Quando veio Dom João VI para estreia da corte no exílio, a coisa mais importante não foi a abertura dos portos, foi a abertura das portas para a imprensa. O monarca sabia que estava procurando sarna para se coçar. Mas teve de correr o risco. Deu letras ao povo e com isso, em pouco tempo, a Coroa lusitana estava demissionária de sua colônia. E, quando a própria Coroa brasileira andava mal em seus negócios com Minas Gerais ou com toda a nação, que fez, nos idos de 1830, um jovem chamado Teófilo Otoni? Levou do Rio de Janeiro para Serro Frio, durante um mês de viagem a lombo de burro, uma pequena oficina tipográfica e editou um jornal de que ele mesmo era o redator. Esse jornal se chamou Sentinela do Serro. Com o seu pequeno jornal, esse republicano da monarquia abalou o trono de tal forma que o nome de Teófilo Otoni se tornou o de um dos mais glorificados campeões da democracia no país. "Nenhum dos jornais da época profligou com mais talento, com mais calor, com mais eloquência os fatais desmandos do Primeiro Reinado", diz Sisson, ao traçar na sua Galeria dos brasileiros ilustres o perfil de Teófilo Otoni.

Isto se fez naqueles velhos tempos. E se fez com uma folha perdida entre os sertões de Minas. O que não fazem os nossos jornais de hoje, quando os tais "desmandos do Primeiro Reinado" não passariam de café pequeno ante as falcatruas do mais desambicioso funcionário público de agora? Que instituições os jornais não criam e não derrubam? Assis Chateaubriand chegou a ser o indivíduo mais poderoso e o mais engrossado pelos nossos políticos. Criou tudo o que quis criar, incluindo deputados, senadores, ministros, presidentes da República. Foi tudo o que quis ser. Como a nossa Casa da Moeda, a sua organização só trabalhava com papel impresso. Mas esse papel impresso representava um valor quando entrava em circulação, influía no mercado e no câmbio do espírito nacional. Uma coluna de papel dos seus jornais pesava mais que todo o café produzido no Brasil, que todo o arsenal do Ministério da Guerra, todas as fábricas e usinas de São Paulo. As suas tremendas bombas, feitas de celulose e de tinta, eram como bombas de profundidade no oceano da opinião pública. Uma ideia lançada pelos engenhos da sua imprensa detonava com essa energia nuclear que tem a palavra escrita sob um máximo de carga psicológica.

Mas a imprensa, como o cinema, pode-se argumentar, deu em indústria. Virou negócio. Imprensa não é mais um berço de abnegações, uma ara de sacrifícios ao bem comum, uma ordem de jejuadores, de abstêmios das comidas terrenas. Assim como o cinema não é uma escola de belas-artes, onde tudo deveria ser grátis para manter impoluída a beleza de suas imagens. Num jornal, como numa igreja, entra de tudo. Entram os maus fiéis e até os maus sacerdotes. Isso não tem muita importância. Basta que a igreja ou o jornal existam. Eles sustentam por si mesmos, apesar de tudo, um a verdade sobrenatural e outro a verdade social para que ambos foram fundados. Ambos mantêm, apesar das heresias e das profanações, a constante presença de seu deus imortal e indestrutível, assim como a vigência virtual de suas leis sagradas. O jornal pode às vezes corromper-se, cair em mãos aventureiras ou incapazes e permitir uma obra condenável. Nem por isso o jornalismo, como um todo e uma função, estará arruinado, perderá a sua fulgurante grandeza, perecendo a abundância dos seus serviços na glória da espécie humana.

Temo que esteja sendo terrivelmente chato com estes excessos de louvação ao jornal. A culpa todavia não é minha, juro. Todo e qualquer protesto, queixa ou reclamação neste sentido os senhores devem endereçar ao doutor Eduardo Gaspar de Paiva Pereira, presidente da Associação de Imprensa, com sede nesta cidade de Poços de Caldas. Ele me convidou para que eu, hoje, domingo, na Rádio Difusora, dissesse o que penso. E eu penso isto, se me permitem ainda um resumo final. Poços de Caldas nunca deixou de ter jornais e jornalistas, desde os seus tempos de simples arraial. E se chega a ter hoje até mesmo uma associação de profissionais do jornalismo falado e impresso, é também nisto uma cidade fora do comum. Já não é uma forja de trabalho e sim uma verdadeira usina, uma Volta Redonda onde toda uma população funde os aços da inteligência na construção monumental dos seus dias futuros.

jurandir-ferreira