Periódico
Folha de S.Paulo

Publicada, posteriormente, no livro Bom dia para nascer,  Companhia das Letras, de 2011, pp. 336-337.

Eu ainda estava em jejum quando abri o jornal. Pensei: quem sabe tomo café primeiro? A foto é tão chamativa que não dá para desviar a atenção. Todo leitor da Folha deve ter tido o mesmo choque. Mas eu confesso que resisti. Pra que, meu Deus, uma foto dessas na primeira página? Posso falar, porque tenho vivido em jornal a vida toda: jornalista tem essa inclinação para o que é negativo. Há quem diga que é um traço mórbido.

Hoje todo mundo sabe, na teoria e na prática, que o corriqueiro não é notícia. Aquele exemplo clássico que já está careca de tanto ser citado. Se um cão morde um homem, nada a noticiar. Se um homem morde um cão, está aí a matéria-prima. Cumpre apurar tudo direitinho. Se o homem foi vacinado contra a raiva. Se o cão estava quieto no seu canto, ou se partiu dele a provocação. Nome, idade, cor e sexo da vítima. Enfim, um prato cheio.

Se notícia é o inusitado, o que sai da banalidade e escapa ao lixo do cotidiano, então por que essa foto na primeira página? Esse personagem será assim tão insólito? Imagino que o leitor já esqueceu a foto de ontem e o impacto que ela nos causou. Esquecer é um mecanismo confortável. E essencial. É o que nos permite continuar vivendo na santa paz de nossa consciência. Que diabo, a gente tem que se defender. Eu, por exemplo, quando dei com a foto, logo pensei com os meus botões: deve ser coisa de muito longe. Biafra, por exemplo. Você se lembra de Biafra?

Biafra, ou Bangladesh. Lá nos cafundós, onde Judas perdeu as botas. Nada a ver comigo. E decidi fugir da legenda. Por via das dúvidas, preferia não saber onde vive, ou sobrevive, aquela coisinha de olhos fechados. Ainda bem. Se tivesse os olhos abertos, grampeava o meu olhar e adeus café da manhã. A mão direita no peito lhe dá um ar contrito. A mão esquerda segura o pé direito. Segura firme, a perna direita cruzada sobre a esquerda. Tem até graça. Uma graça horrível, mas tem.

E aquela fralda imensa. Branca, farta, não o deixa nu. Ou nua. Não está dito qual o sexo do top model que posou para o fotógrafo. Tem quatro meses, diz a legenda. Está internado na Paraíba, com suspeita de cólera. Como será o nome desse serzinho tão indefeso? Aí, me ocorreu que seu nome é legião. Seu sobrenome? Brasil. Por falar nisto, quando é que a gente vai tomar vergonha na cara?

otto-lara-resende
x
- +