Cronistas e pintores

José Pancetti pintando na lagoa de Abaeté, Lagoa do Abaeté, Salvador-BA, 1957 circa. Foto de Marcel Gautherot/ Acervo Instituto Moreira Salles.

“Estou convencido que nessa coisa de pintura a gente de vez em quando deve ficar uns tempos sem ver nada”, e aí, um dia à toa, “como quem vai matar meia hora antes de ir para o escritório”, entrar em um Salão “com os olhos inocentes, distraídos” e, sem se importar com autoria e escolas, deixar que “o sentimento da gente vagabundeie” pela exposição de arte.

O entusiasmo por atravessar uma galeria num “passeio vadio, sem catálogo”, é de Rubem Braga, cujo gosto pelas artes plásticas se evidencia em todo o seu trabalho – tanto na literatura, com crônicas que revelam grande sensibilidade artística, quanto no jornalismo, com pitacos analíticos em artigos, perfis e entrevistas com diversos pintores. Uma farta seleta desses escritos foi reunida na antologia Retratos parisienses, organizada por Augusto Massi em 2013. Durante os anos em que residiu em Paris, Braga colaborou com o suplemento de cultura do Correio da Manhã e escreveu bem de perto sobre Marie Laurencin, Pablo Picasso, Georges Braque, Chagall, Matisse, Foujita e de Chirico, só para citar algumas das mais célebres pinceladas que se encontravam por lá.

E não só como jornalista Braga esteve diante de pintores – o cronista também posou como modelo para Portinari: “Na minha frente Portinari trabalha, silencioso, os olhos espertos e minuciosos passando do papel para minha cara – a mão esperta e minuciosa passando minha cara para o papel”. Em duas sessões, Candido Portinari desenhou o amigo “com uma paciência implacável” – “sem a mais leve hesitação no traço”, estudando “cada tênue sombra da testa” enquanto alternava dois óculos, um para ver melhor o papel, outro para enxergar o representado. Com “o pescoço doendo” e com “pena de vê-lo gastar tanta atenção e cuidado” em sua homenagem, Braga dizia que já estava bom, mas Portinari não ouvia. Fosse quem fosse, tratava-se “de um trabalho seu, e um trabalho deve ser bem feito”.

O resultado ficou na parede da cobertura do cronista em Ipanema, ao lado de várias outras obras de amigos, como Di Cavalcanti, Djanira e Cícero Dias. Braga era mesmo fascinado pelo mundo da pintura. Afinal, considerava que no sossego de seu ateliê, O pintor é um rei: “De pincel na mão, em silêncio, ele refaz o mundo”. Não apenas o mundo real, “que se fragmenta em mil formas”, como todos os outros mundos que só a arte consegue acessar. Quando um artista olha a moça dobrar o joelho, por exemplo, “emergem do tempo outros joelhos de neve ou de cobre, e sua mão lenta que traça a curva está recuperando essas visões antigas”. E aí a curva deixa de ser um joelho para se tornar “um elemento da composição do quadro que nasce imperioso com sua própria lei”. O mundo como o conhecemos, portanto, não existe mais: “Existe apenas um quadro que vive em seu próprio reino”.

Rachel de Queiroz também escreveu sobre artes plásticas, tocada pelo trabalho do escultor cearense Jacinto de Sousa, que “nunca pediu muito da vida nem dos homens, nunca forneceu as próprias medidas a algum alfaiate de glórias” e morreu sem nada, no Quixadá, abrindo mão “da consagração da cidade grande” e dos muitos louros que merece sua arte. “Sozinho, silencioso, mas consciente da sua vocação”, foi “escultor à maneira artística mais pura”, “pelo simples amor de criar coisas, de fazê-las belas e perfeitas”. Movido “apenas por uma obscura necessidade de dar forma e vida à matéria bruta”, tinha o dom “de transformar um bloco seco de pau num homem”. Em sua Glória humilde, Jacinto recusou “viagens, cursos de aperfeiçoamento, exposições”. Só queria “o direito de modelar figuras a seu capricho”. Morreu pobre, “deixou pobre a família grande”, mas “enfeitou a cidade com as suas mãos”.

Às vezes, a arte também pode se prestar a finalidades menos estéticas, digamos. É o que Antônio Maria ensina num passeio pelo Alto da Boa Vista & Floresta, na Tijuca. Para impressionar a moça que lá levou “com as melhores intenções deste mundo”, foi aproveitando os pretextos do trajeto até a Gruta Paulo e Virgínia para inflar o peito: “Uma capela, à direita”, onde há um painel de Portinari, dá margem para se falar “uma porção de coisas interessantes sobre pintura”. Seria conveniente “citar o caso de Van Gogh, que cortou a orelha e deu a uma rapariga. Sobre Gauguin, é aconselhável não sair do livro Um gosto e seis vinténs, carregando um pouco a narração de sua morte, com a face leonina, destruindo nas chamas sua pintura”. Também dá para levar a conversa até Picasso – nesse caso, “frisar bem que se trata de comunista, embora leve uma vida de burguês” – ou Pancetti, que “foi marujo, morou na Itália, é tio de Isaurinha Garcia, sofre de tísica, apaixona-se com imensa facilidade e é doutor em marinhas”. Por fim, o “fecho de ouro” seria lamentar a doença de Matisse, acometido por um câncer no intestino. À essa altura do monólogo, o par já “terá passado brilhantemente pela igrejinha da Floresta”, e o lirismo será inevitável.

É claro que no roteiro gaiato de Maria não há nenhum pintor anônimo, desses que enfeitam restaurantes e consultórios, pois embora estejam bem à vista, não impressionam moças apaixonadas. No rastro desses artistas desconhecidos, um amigo entendido do assunto certa vez levou João do Rio para “ver, levemente e sem custo, os pintores anônimos, os pintores da rua, os heróis da tabuleta, os artistas da arte prática”, cujos borrões sem perspectiva esbanjam “lições de filosofia” no meio da “confusão da populaça”.

Era domingo, “dia em que o trabalho é castigar o corpo com as diversões menos divertidas”, e os dois saíram, “devagar e a pé”, para constatar que em cada canto de rua do Rio de Janeiro “depara a gente com a obra de um pintor cuja existência é ignorada por toda a gente”. No caminho, entre “bodegas reles” e “botequins inconcebíveis”, o cronista se deu conta de uma porção de “amostras de arte popular” que via sempre, mas sem prestar atenção – já que não estavam recolhidas em galerias, não se dava conta de sua beleza. A conclusão confidenciada ao amigo não poderia ser outra: “Há coisas piores nos museus”.

A pintura das ruas, na parede de um café, é capaz de transformar o estabelecimento em “uma catedral dos grandes fatos”. Ruas, avenidas, “grutas, cascatas, rios marginados de flores vermelhas, palmas emaranhadas, um pandemônio de cores” e uma “verdadeira orgia de paisagem”, espalhadas pelas telas da cidade, compõem retratos de um cotidiano de todos os pontos de vista – há amostras do Pão de Açúcar “redondo como uma bola, no Estácio”, “do feitio de uma valise no Andaraí” e “comprido e fino, em São Cristóvão”, por exemplo. “Inteiramente tonto” diante de algumas desses quadros, o cronista se comoveu – “mas não é uma das grandes preocupações da Arte comover os mortais, comovê-los até não mais poder?”. Sabia de tudo o nosso João do Rio.

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Nota do editor: Para conhecer mais sobre a relação de Rubem Braga com as artes plásticas, recomendamos a leitura de “O desenhista Rubem Braga”, na seção “Artes da crônica”. Também chamamos a atenção para a bela leitura de Bia Paes Leme disponível na página da crônica “O pintor”.