Segundo o conceito clássico, cabe aos poetas celebrar a glória dos grandes homens. Ai de mim, não sou poeta. Felizmente o morto que celebro aqui nunca pediu muito da vida nem dos homens, nunca forneceu as próprias medidas a algum alfaiate de glórias.

Chamou-se em vida Jacinto de Sousa. Nasceu em terra pequena, morreu em terra pequena. E em terra pequena viveu sempre, por escolha própria, por vocação de humildade. Poderia ter abandonado a sua cidadezinha de interior, vindo disputar a consagração da cidade grande; e tinha, é claro, mil possibilidades de vencer; veem-se aí cobertos de louros muitos que valem infinitamente menos do que ele valia. Pois Jacinto de Sousa tinha talento, tinha coragem, tinha coração.

Sozinho, silencioso, mas consciente da sua vocação, foi escultor. E escultor à maneira artística mais pura, como o sabiam ser os primitivos, pelo simples amor de criar coisas, de fazê-las belas e perfeitas. Esculpir a madeira ou modelar o barro movido apenas por uma obscura necessidade de dar forma e vida à matéria bruta — arte pela arte na sua expressão mais autêntica, mais genuína e sem mistura. Tinha nas mãos, de nascimento, o dom de compor semelhanças, de transformar um bloco seco de pau num homem, num bicho, numa rapariga; e durante todos os anos em que viveu, cultivou pacientemente esse dom. Os outros não entendiam aquele esforço — se ele não cuidava em glória, em triunfo, em posteridade — se não tinha ambição... E ao artista seria difícil ou impossível explicar que aquele esforço se pagava sozinho, não exigia um preço porque em si próprio encontrava a sua recompensa.

Ofereceram-lhe viagens, cursos de aperfeiçoamento, exposições, — ofertas que ele sempre recusou, obstinadamente. Nada mais queria do que a vida discreta na sua cidade pobre — o Quixadá — e o direito de modelar figuras a seu capricho: belas, ou satíricas, ou dramáticas.

Talvez para a maioria dos homens de hoje — criados na lei brutal do mundo moderno — “vencer” — esse artista voluntariamente obscuro não passe de um ingênuo, um apoucado, quase um falido. Afinal podia ter sido tanto — e morreu sem ser nada!

Porém, ao contrário, não terá sido ele simplesmente um sábio? Não conheceu a dureza das competições, a amargura das disputas de prêmios e medalhas, a sórdida mesquinharia das panelinhas artísticas. Lá na sua terra era ele o primeiro, — mais do que o primeiro, o único; querido, admirado, precioso, como uma roseira solitária num jardim de pobre. Ornou a cidade com uma estátua do seu cinzel — enfeitou a cidade com as suas mãos. Morreu pobre, deixou pobre a família grande. Mas que é a pobreza afinal? O grande horror da pobreza é o medo da fome, da necessidade. Aquele que vive remediado, que com o fruto da sua indústria tem onde morar e o que comer, que não passa fome nem frio, será realmente um pobre?

O rico não come os broches de ouro, as ações e as apólices, nem os anéis de brilhante. Nem dorme com eles, nem com eles satisfaz nenhuma necessidade do corpo. E assim a única diferença que existe entre o rico e o remediado é a posse de coisas que o mundo estima como valiosas e a sensação de superioridade que lhe dá a posse dessas coisas. Mas quem já tem nas mãos o poder de criar esses tesouros, criar e possuir e acumular à vontade aquilo que os ricos cobiçam e pagam? Não parece que esse homem se possa chamar de pobre.

Antes, o que dele se pode dizer é o que foi dito de Maria, irmã de Marta: — que soube escolher a melhor parte.

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