Ouça a crônica de Rubem Braga na voz de Bia Paes Leme, coordenadora de música do IMS.
O apartamento dá para um pátio; e de outro lado desse pátio há dezenas de apartamentos, dezenas de retângulos de janelas. Esses vizinhos mandaram reclamar: não sabiam que um pintor viera morar ali, e se espantavam adivinhando às vezes, na penumbra da sala, um dorso nu de mulata ou a figura de uma mulher alta e loura se despindo tranquilamente.
O zelador disse: “O senhor faça o favor de mandar pôr umas cortinas”. O pintor disse: “bem”. Pessoalmente não compreendia como a distante visão de suas amigas nuas poderia desagradar a ninguém. Mandou pôr um toldo amarelo. Sim, era, até bem pouco tempo, de um amarelo desmaiado de canarinha belga em vésperas de muda. Mas não há vizinhos apenas na frente; há também no alto. E o toldo amarelo começou a receber estranhos líquidos, uns escuros, outros vivos, lançados das janelas superiores. O pintor olha com melancolia seu toldo que rapidamente se mancha e enfeia. “Qualquer dia os vizinhos da frente reclamarão que meu toldo está muito feio” — diz ele com bonomia.
Sabe que é um condenado, um escravo desses vizinhos inumeráveis empilhados à sua volta e em sua frente, essa população que se esgueira por corredores e elevadores, acende e apaga suas lâmpadas, rega seus potes de flores e lança no vácuo, alegremente, suas pontas de cigarro. A vida pulula em volta do pintor: formas vivas ou mecânicas que se movem, volumes e cores que se deslocam, pés, cabeças, ancas passando. Mas no sossego de seu laboratório ele é o rei: de pincel na mão, em silêncio, ele refaz o mundo. Não apenas esse atual em volta dele, que se fragmenta em mil formas, desde a árvore empoeirada e o bonde moroso e cheio e os cubos estéreis dos edifícios de cimento até a nesga de mar azul além, lá muito além. Quando ele olha quieto a mulher nua que dobrou o joelho, então emergem do tempo outros joelhos de neve ou de cobre, e sua mão lenta que traça a curva está recuperando essas visões antigas. E então essa curva deixa de ser um joelho, é um elemento da composição do quadro que nasce imperioso com sua própria lei. O mundo não existe mais, existe apenas um quadro que vive em seu próprio reino. Assim surgem no fundo esses peixes violetas, esse beiral de casa antiga, a leve ondulação na sombra. Quem está no divã? Não existe mais a moça linda e rica que posa para o retrato, nem essa mulatinha humilde que veio com sua bolsa vermelha e seus sapatos cambaios e desnudou os jovens seios. O pintor cantarola ou diz coisas vagas, mas seu olhar não engana. A pessoa humana em sua frente sumiu, passou a viver apenas como forma e tons, entrou na longa teoria de imagens ligadas ou soltas, virou linha de tornozelo, penumbra de panturrilhas, curva de ancas. A vida que ela tem ou se imagina foi absorvida em um outro mundo onde um deus em mangas de camisa cria a sua própria luz e instaura a sua própria ordem. Tudo o que fica fora desse mundo é confuso e sem lei: e quem não o ama e compreende o pensará arbitrário e injusto. O pintor assovia, abre a porta para receber o cobrador de gás e luz, contempla seu toldo manchado, senta na mesa, propõe jogar baralho. Mas de vez em quando olha seu quadro: ele está lendo as primeiras linhas do Gênesis e sabe que todo o resto, essa mulher de riso agudo, o amigo que trouxe a garrafa de vinho, o vizinho que ligou o rádio tão alto, tudo isso é anarquia e ilusão. O mundo verdadeiro está nascendo em azul, em verde, em terras quentes; está se movendo lentamente sob seus olhos e suas mãos para viver sua harmonia feliz. Ele é que vai separar as águas e retirar as trevas da face do abismo. Ele é Deus na manhã do dia primeiro.