Atrás de mim, bigodudos e soletres, sob as areadas da velha Faculdade de Direito de S. Paulo, posam para a história vários cavalheiros que fundaram o jornal que é hoje O Estado de S. Paulo, posam com a segurança e gravidade de senhores que sabem que vão ser ruas, praças ou avenidas: um Rangel Pestana, um Campos Sales...
Na minha frente Portinari trabalha, silencioso, os olhos espertos e minuciosos passando do papel para minha cara — a mão esperta e minuciosa passando minha cara para o papel. Na mão direita tem o lápis, na esquerda um bolinho de miolo de pão. E atrás deles, além das vidraças descidas, as ondas do Leme espoucam raivosas, entre espumas ferventes, açoitadas pelo frio sudoeste.
Desde o primeiro minuto, sem a mais leve hesitação no traço, ele pegou minha cara com uma verdade, uma precisão, impressionantes. Mas me fez posar uma hora inteira e disse que voltasse hoje. Tem dois óculos, e os troca de vez em quando: diz que um é melhor para ver o desenho, outro para ver minha cara. Já estou com o pescoço doendo, e acho ótimo quando Maria aparece com um excelente café de Batatais. O retrato está perfeito — diz Maria, diz um seu aluno, diz uma visita, digo eu. Mas Portinari diz que não. Faz-me sentar novamente e continua a me examinar com uma espécie de ardor frio, estudando cada traço de leve ruga, cada tênue sombra da testa ou do pescoço, cada fio de cabelo. E, com uma paciência implacável, trabalha, trabalha. Insisto em que já está ótimo: tenho até pena de vê-lo gastar tanta atenção e cuidado nesse trabalho. Ele, porém, não liga ao que digo. Não se trata de mim; trata-se de um trabalho seu, e um trabalho deve ser bem feito:
— Ainda quando é um óleo a gente pode desprezar certos detalhes. Mas um retrato assim, de desenho miúdo, tem de ser justo, bem justo. Antigamente eu faria isso em vinte minutos. Hoje não faço em menos de duas sessões...
E inventando uma desculpa para sua consciência de artista cada dia mais exigente:
— Este ano eu faço 50 anos. Tenho de trabalhar direito, porque os meninos me criticam.... Um velho tem que fazer a coisa certa.
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A certa altura comentamos algumas declarações de Max Bill sobre pintura e arquitetura brasileira. Conto-lhe que Lúcio Costa deu a Flávio de Aquino, para sair em Manchete, uma entrevista rebatendo o que o suíço disse. Acho que Max Bill foi um pouco impertinente e talvez “fiteiro” em algumas de suas apressadas opiniões. Portinari diz que suas ideias sobre arte são completamente diferentes das de Max Bill, mas acha que ele fez bem em ser sincero.
— Cada um diga o que quiser. O que é importante, afinal de contas, não é falar, é trabalhar. Isso é o que muitos rapazes esquecem...
Confesso que admiro “Unidade Tripartite”, escultura em metal com que o suíço ganhou o prêmio da Bienal Paulista. Já me disseram que aquilo é apenas o desenvolvimento de uma forma geométrica encontrável no Museu de Matemática de Paris. Mesmo assim, me parece um bom achado: tem grande harmonia, dignidade e beleza. Portinari concorda vagamente:
— É...
Mas depois, com um brilho em seus olhos de menino esperto:
É, mas eu prefiro um Ford — porque anda...