Juntando os trapos

Retrato de casal,  ateliê de Chichico Alkmim, beco João Pinto, 86, Diamantina-MG, 1920 década. Foto de Chichico Alkmim/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Maio, você sabe, é o mês das noivas. É possível que a tradição tenha sido importada do hemisfério de cima, onde a primavera está em seu auge, rebentando em flores e cores. Nada mais adequado para uma festa de casamento. Outros apontam uma provável origem no cristianismo, que dedica o mês à devoção de Maria, mãe de Jesus e, por extensão, de um mundaréu de gente. A ideia um pouco antiga de que casamento está relacionado à maternidade seria a justificativa. Seja qual for a razão, convencionou-se que maio é o mês dos casamentos – embora, no Brasil, dezembro seja o período em que mais se celebra a junção de panos.

A filha de Antônio Maria não tinha idade para saber de nada disso quando entrou no escritório do pai com um jeito solene, “tão humilde, tão vitorioso” e comunicou: “Meu pai, estou noiva”. O cronista, abraçando-a, quis saber de quem, e “ela disse o nome de um dos meninos da vizinhança”. Rir seria estragar aquela Primeira paixão, “quebrar a alegria de um dia de noivado”. Com toda a seriedade, então, o pai deu os parabéns e desejou felicidades ao casal. Disse que aguardava a data para entrar de braços dados com ela – e “em seus olhos da cor de abacate maduro” viu acordes da “Marcha nupcial”, aquela do alemão Felix Mendelssohn. Nas crianças, o amor “é um estado de alma absorvente, pastoso e imenso”, concluiu Maria.

Mas o amor dá espaço para muitos outros estados de alma. Em certa noite de sexta-feira, Otto Lara Resende espiou os movimentos de um casal que se aprontava para sair. Era Apenas um casal como outro qualquer, mas, como todo bom observador, o cronista captou nuances reveladoras. Era um par “ajustado, vê-se”, provavelmente com dois filhos e uma vida tranquila, “apesar de tudo”. Tinham um “halo de felicidade” certamente motivado pela expectativa da noite livre. Ela, “produzida, elegante”, com olhos e boca destacados. Ele, com o cabelo molhado, “um toque de sua intimidade”. Os dois “iam calados, com o ar ausente da saciedade”. Confiavam muito na “bandeira de concórdia e lazer” que o sábado hasteia.

Com aparentes trinta e poucos anos, vão ser felizes – “estão na hora exata de ser felizes”. Mas daqui a algumas horas estarão de volta, “meio cansados, meio insatisfeitos”. Ele corre o risco de ter “bebido dois drinques a mais”, ela de ter “dito uma palavra que convinha silenciar”. De repente, pode ser que a noite tenha “se dissipado na frustração” dos dois. Talvez já levassem em segredo, naquele silêncio de satisfação, “o germe da discórdia”. Paciência. Assim são as coisas. Vão e vêm. De todo modo, o casal estava “unido e pronto para partilhar a mesma ventura”, a mesma aventura. “Deus vos acompanhe, em vossa trêfega disponibilidade”, pois, desejou o cronista.

Rubem Braga, muitas e muitas décadas antes de inventarem o webnamoro, relembrou uma história de casamento à distância. Numa cidadezinha do interior, havia uma “professora de família muito boa, e cheia de prendas, muito benquista entre os outros – mas sem amor”. Era, afinal, feia e “e estava ficando solteirona”. Certo dia, começou a enviar recados pelo jornal a um senhor que morava em outro estado – algumas folhas, como o Jornal das Moças, publicavam uma espécie de correio elegante em que apaixonados trocavam juras de amor. Depois, os pretendentes foram para o privado e “passaram a se escrever diretamente”. Aí trocaram fotografias e acertaram o noivado por correspondência mesmo, cada qual indicando pessoas de confiança que pudessem referendar as qualidades do outro. Acontece que a moça, zelosa de sua aparência, não economizou no retoque do retrato que enviou ao amado – e acabou criando o que talvez tenha sido o primeiro fake da história dos relacionamentos virtuais.

Decididos a consumar o amor, os dois combinaram de se encontrar no Rio de Janeiro para o casamento. Mas o rapaz, batizado de O aventureiro pelos que acompanhavam o caso, ao constatar que ao vivo a pretendente não era nem metade do que vira na foto, pulou fora. Alegou, de boa-fé, que a professora “o lograra”, pois “era muito mais feia e mais velha do que fizera crer”. Humilhada, a moça foi amparada por amigos da família, indignados com o vexame da senhorita, e foram ter com o aventureiro. Puxando um revólver, disseram que a professora, sendo de uma família muito correta, não poderia passar por aquilo. Era simples: ou o cavalheiro casava, ou levava bala. Diante de tão convincente argumentação, “o aventureiro pensou muito – e casou”. No civil e no religioso. E acreditem: “O casal teve muitos filhos e foi, e ainda é, muito feliz”. Quem diria que já na década de 1950 o casamento pudesse nascer à distância. Afinal, “é grande e triste o território do Brasil, e ao longo de suas léguas há muito coração fremente e solitário”.

Outro cronista que recontou causo de matrimônio foi Lima Barreto. Irene e Inês eram duas amigas de juventude. Morando em Paris há muitos anos e sem se corresponder, Irene recebeu a notícia de que a amiga tinha se casado e logo imaginou que Inês tivesse fisgado um famoso poeta. Isso porque a vida toda ela arrastou asa para literatos. No colégio, dizia suspirosa: “Eu me hei de casar com um grande poeta”. Irene advertia: “Esta gente não serve para marido; são estroinas, volúveis”. Mas Inês não arredava e “seguia todos os poetas que surgiam, com vagar, ardor e uma ingênua admiração”. Era o seu desejo. O ideal. Não havia conferência de escritor a que Inês não estivesse presente.

Eis que o “medo dos azares da guerra” fez com que Irene deixasse Paris e retornasse para o Rio de Janeiro com a família. Ao reencontrar a amiga, “imediatamente perguntou pressurosa” se tinha enfim conseguido conquistar o seu escriba. “Não; é campeão do football”, respondeu Inês, não sabemos ao certo se com pesar ou algum alívio.