O encanto de Minas

Meninos brincando no pátio do Clube Atlético Mineiro, Belo Horizonte-MG, 1950. Foto de José Medeiros/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Oh, Minas Gerais! Quem te conhece não esquece jamais, diz a canção adotada como hino informal do estado. “Conhecer”, neste caso, certamente significa “visitar”. Mas, se pensarmos na outra acepção do verbo, a de “compreender”, é capaz de reacendermos uma discussão antiga que sempre aparece em nossas letras. De tempos em tempos, alguém se lembra de perguntar o que seria o tal espírito mineiro, esse charme peculiar de uma unidade federativa que não compete às outras 26, e a conversa vai longe, geralmente acompanhada de versos de Drummond, generosas talhadas de queijo e causos bem-humorados.

Em 1992, Otto Lara Resende, natural de São João del-Rei, escreveu um artigo sobre a questão, perguntando-se: Mineiridade existe? Ou é papo furado? Como deve ter acontecido também a outros escritores conterrâneos, muitas vezes perguntaram a ele o que significa ser mineiro. “É nascer em Minas, uai”, respondeu, mineirissimamente, o cronista. E, talvez, também seja sair de lá, porque “pouco importa há quanto tempo você esteja fora, todo mundo, é só você abrir a boca, vê logo que você é mineiro”.

O mistério da essência mineira “a nos desafiar e a nos dividir”, diz Otto, seria comparável ao enigma de Capitu, que, ao que tudo indica, é carioca e nada tem a ver com isso. Como toda vez que tentam arrematar a questão “Minas se esquiva” e “dá no pé”, o melhor seria deixar isso de lado. O problema é que, mesmo tendo jurado não tocar mais no assunto, de repente “a pergunta reaparece e, zás, a gente cai na armadilha”. Não tem jeito: “todos os mineiros já caíram nesse pequeno abismo de sondar o que ora é mineiridade, ora é mineirice, ora é mineirismo”.

De lá para cá, continuamos sem a resposta. De todo modo, se há algo de Minas que nada tem de misterioso e que funciona como ponto pacífico de qualquer discussão, é a comida. Durante um típico Almoço mineiro, o capixaba Rubem Braga se esqueceu do mundo diante daquele lombo “macio e tão suave”, que “por fora era escuro, com tons de ouro” e se deixava cortar com facilidade, revelando uma polpa “levemente enfibrada, muito branquinha, desse branco leitoso e doce que têm certas nuvens às quatro e meia da tarde, na primavera”. O tutu era “honesto, forte, poderoso e saudável”. Os torresmos, “alguns loiros, outros mulatos”, eram “molinhos, quase simples gordura”, e “davam uma nota marítima, salgados e excitantes de saliva”. Claro, também havia arroz, pão e couve, com seu “verde molhado”. Diante daquele prato “que fumegava suavemente, subia para a nossa alma um encanto abençoado de coisas simples e boas”. Era esse o encanto de Minas.

Mesmo convidado para o almoço, Braga sabia que, em certas reuniões dos filhos de Minas, há uma linha intransponível para quem vem de outras paragens. Quando Os mineiros se encontram, “eles se detêm um instante como duas formigas que se cumprimentam”. Depois, em um “rito exclusivamente mineiro”, ficam sussurrando, perguntando pelos seus. Dão notícias, falam um “pouco de literatura, alguma coisa de política” e mencionam cartas de amigos, pacientes “como uma ladeira de Belo Horizonte de madrugada”. De resto, “o mais que eles falam é segredo mineiro”: “suspeita-se de que debaixo do maior sigilo comentam pessoas de Pernambuco, do Rio Grande do Sul e outros países estranhos”, “tramam ocupar novos territórios” e “sonham com um porto de mar – pois assim são os mineiros”.

Para Paulo Mendes Campos, Minas é mais saudade que mistério. Cria de Belo Horizonte, uma terra “de muitas árvores que se foram”, o cronista se pega pensando nas Folhas, flores e frutos de sua juventude ao revisitar a cidade de férias, já mais velho, e topar com “uma alta e robusta paineira” que conheceu quando menino. Era a mesmíssima árvore, uma sobrevivente da “civilização às avessas, antivegetal”, que “do campo faz o deserto” e “da cidade tropical faz o purgatório”. Da paineira, puxou pelo fio da memória um espinheiro “que dava sombra a dois namorados” na avenida Paraúna, as favas que enchiam seu bolso próximo ao Ipiranga Futebol Clube e que funcionavam como “moeda corrente” na escola, o pé de jenipapo do Parque Municipal, o cajueiro da rua Alagoas, em cujas ramagens “brincava de marinheiro em mastro de navio”, e uma linda mangueira com a qual conviveu “em toda a sua intimidade, a resistência, as distâncias, as reentrâncias de cada galho”. Não foram poucas as tardes da meninice que passou “acastelado na copa dessa árvore amiga, hoje morta”. Apesar de tudo, a Belo Horizonte do cronista ainda “é verde e perfumada” quando percorrida antes de dormir, com “ruas compridas” e “jardins pasmados pelas rosas”.

A cearense Rachel de Queiroz, que recomendou uma viagem a Ouro Preto para um amigo, também ficou impressionada pela vegetação e pela geografia de Minas, com suas “ravinas alcantiladas”, seus “viadutos de pedra” e seus vales fundos. Mas foi o silêncio de sua beleza que a conquistou: “E estarás em total solidão naquelas alturas, e te sentirás muito pequeno, e filho de uma idade muito moderna em comparação com aquela antiguidade e aquela aspereza”. Encantada com a tranquilidade das Gerais, talvez Rachel não tenha dado muita bola para a famosa Conversinha mineira que Fernando Sabino retrata tão bem.

Em uma cafeteria, o cronista pede um café com leite. “Café com leite só se for sem leite”, responde o atendente, porque o leiteiro não tinha ido. E quando é que ele vem? “Tem dia certo não senhor. Às vezes vem, às vezes não vem. Só que no dia que devia vir em geral não vem.” Vencido, o cronista aceita o café com leite sem leite e muda de assunto. Quer saber como vai a política da cidade. “Sei dizer não senhor: eu não sou daqui.” Mas mora aqui há quanto tempo? “Vai para uns 15 anos”, responde o atendente – “isto é, não posso garantir com certeza: um pouco mais, um pouco menos”. Ora, e em 15 anos já dava para saber como vai a situação? “Ah, o senhor fala a situação? Dizem que vai bem.” Ué, para que partido? “Para todos os partidos, parece.” Mas, afinal, quem é que vai ganhar a eleição? “Uns falam que é um, outros falam que outro. Nessa mexida...” – é esse, também, o encanto de Minas.