É exigir muito de uma humilde cearense pedir-lhe que fale a respeito da Vila Rica de Ouro Preto, monumento nacional. Mais fácil há de lhe ser falar sobre a estrada que vai a Ouro Preto via Ouro Branco, caminho hoje em dia quase abandonado, mas que outrora foi a estrada real das cavalgatas, das tropas de mulas, das cadeirinhas e das visitas imperiais; caminho por onde devem ter conduzido amarrados os inconfidentes, na sua fatal jornada para o Rio.

Quem vai pela estrada de rodagem Rio-Belo Horizonte encontra à sua mão direita um desvio que parece esbarrar numa serra negra, toda de pedra e carrasco, espécie de paredão agressivo, eriçado de arestas inimigas; pois aquela serra é que irás galgar, viajante, depois de passares pela adormecida cidade de Ouro Branco que também possui a sua matriz toda de ouro por dentro, segundo convém às matrizes daquelas cercanias. Logo ao sair de Ouro Branco enfrentarás a serra, atravessarás ravinas alcantiladas, e cruzarás viadutos de pedra, feitos por mão de escravo, com seus parapeitos em ruínas, rodarás sobre pontes de arcos romanos que escalam correntezas encachoeiradas de água límpida, e muitas vezes terás medo, porque a estrada que se pendura à beira de precipícios sem fundo, é tão estreita que mal comporta o nosso Jeep, quanto mais o outro, em sentido contrário, que pode vir pela frente. E estarás em total solidão naquelas alturas, e te sentirás muito pequeno, e filho de uma idade muito moderna em comparação com aquela antiguidade e aquela aspereza. E pensarás nos homens de há dois séculos que fizeram aquela obra, e que elegeram como morada aquela serrania agreste, tão longe do mar e do resto do mundo, e que a limparam de todo o ouro que ela continha, e lidaram, e guerrearam, e quiseram bem e morreram, e construíram no mais fundo vale entre os morros a sua vila rica de sobradões e igrejas ― e após marcarem a terra com uma pegada tão funda, se dissolveram pacificamente, morreram, ou foram embora, e apenas deixaram atrás de si aquele cenário vazio, com as luzes apagadas e os figurantes dispersos.

*

Deixemos, pois, o louvor de Ouro Preto; as débeis cordas da nossa lira não podem se atrever a cantar aquilo que já cantou Manuel Bandeira, o Altíssimo Bardo. Antes entremos pelo Museu da Inconfidência, percorramos as salas de cima cheias de tesouros setecentistas, os móveis lavrados, as telas ingênuas, os santos de pedra ou de cedro, o São Jorge articulado que saía nas procissões montado num cavalo de verdade; desçamos em seguida para as antigas prisões do andar de baixo, com o seu teto alto e o chão de pedra, onde se exibem carruagem de lanterna de prata, cadeirinhas com varas em forma de cobra, altares inteiros de igrejas já desaparecidas; entremos por fim na sala de Tiradentes, onde há os pedaços da sua forca, e o original da sua sentença de morte e a ata do suplício, e mais outras dramáticas lembranças; e penetremos por fim numa sala clara, ampla e vazia, cujas janelas de grades dão vista para os morros e as portas laterais se abrem para o pátio interno que o sol da tarde banha de viés. Nada se vê naquela sala senão, enchendo toda a parede do fundo, uma cortina de lã branca que tem no centro o triângulo vermelho dos Inconfidentes. No chão lajeado, outras lajes se superpõem, acompanhando o quadrado das paredes, ― e cada uma daquelas pedras guarda debaixo de si cinzas dum Inconfidente, cujo nome está gravado na face superior em letras abertas no granito. A meio das lápides, uma outra, que não está deitada porque não protege cinzas, mas erguida a cutelo, em memória de José Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes, cuja cabeça mutilada e cujo corpo esquartejado foram pregados em postes ao longo das estradas de Minas Gerais.

Na grandeza daquela simplicidade, ― sem bronzes, sem epitáfios, sem estátuas e sem colunas ― só a pedra fria e a grande cortina branca, e aqueles nomes singelos de homens mortos, o coração de gente se aperta numa dor e numa saudade que não se entende direito, numa espécie de gratidão obscura e aflitiva. Tão nua e clara a sala, entretanto, é mais religiosa do que uma igreja, e de uma beleza tão pungente quanto a história da república, que acabou na forca e no desterro.

*

Amigos, nunca faço anúncios ― mas deixai hoje que vos faça um: quando estiverdes exaustos do Rio, de São Paulo ou do Recife, pegai do vosso corpo e dos vossos cuidados e ide passar uma semana em Ouro Preto. Lá achareis um hotel que é verdadeira surpresa de bela arquitetura e de conforto, naquelas serranias desoladas; lá vereis a ponte onde Marília namorava, a casa, onde se reuniam os Inconfidentes, as preciosas coleções da Escola de Minas, vereis tantas igrejas e tantas evocações ilustres que perdereis a conta delas. E no meio das pedras mortas e das casas vazias, vereis por toda parte os estudantes de Ouro Preto subindo e descendo as ladeiras, enchendo os cafés, tão anacrônicos e ao mesmo tempo tão bem situados naquela cidade que é sua, quanto a passarinhada da serra que faz algazarra nos beirais das velhas igrejas: ouvireis suas serenatas e seus discursos filosóficos, e depois no ar frio da serra a lua subir, iluminando as torres redondas de São Francisco, o Alto da Forca e o morro da Queimada, e sentireis que o mundo não são apenas aquelas loucas cidades onde vivemos, não é só competição, dinheiro ou política, mas também este silêncio, esta beleza, esta paz.

rachel-de-queiroz
x
- +