Periódico
Manchete, nº 777
Publicada também em: livro O anjo bêbado, de 1969.

Uma vez, passando umas férias em Belo Horizonte, tomei um bonde, cujo percurso me era desconhecido. Ia olhando os bangalôs de um bairro novo, quando de repente, em sobressalto, disse em voz alta: é ela!

E era ela mesmo, sem tirar nem pôr, uma árvore, uma alta e robusta paineira que conheci quando menino. A cidade se estendera até o limite extremo do meu mundo, a minha selva. Desci do bonde e não perguntei à minha amiga de infância o que acontecera às companheiras, já sabia: progresso no Brasil é matar as árvores para plantar uma roça ou uma casa. Essa civilização às avessas, antivegetal, do campo faz o deserto, e da cidade tropical faz o purgatório. O Rio, por exemplo, o Rio é uma cidade que tem horror à chuva – assim como o resto do mundo tem horror à bomba atômica – porque foram dizimados os “grandes arvoredos” de que falam os cronistas do primeiro século.

É uma facécia nossa dizer que ninguém pode destruir o Rio. Mentira, pode-se sim, acabarão destruindo – e sem que se apure a responsabilidade, dissolvida na enchente de lama e tempo.

Mas estou um pouco cheio do Rio e volto à paineira. Belo Horizonte é para mim uma cidade de muitas árvores que se foram. No início da avenida Paraúna, no chão vermelho de pó, havia um espinheiro que dava sombra a dois namorados. Na rua de Lavras me lambuzava de jalão. Perto do Ipiranga Futebol Clube me abastecia de favas, moeda corrente no grupo escolar. No Parque Municipal amava mais do que todas as outras plantas um pé de jenipapo. Depois de comer as frutas, brincava de marinheiro em mastro de navio, nas ramagens mais altas do cajueiro da rua Alagoas. Os pinheiros da caixa d’água da Serra existem ainda, pelo menos alguns. Convivi com uma linda mangueira em toda a sua intimidade, a resistência, as distâncias, as reentrâncias de cada galho. Não poucas tardes da minha infância passei acastelado na copa dessa árvore amiga, hoje morta.

Minhas andanças em noites de devastação adolescente estão para sempre associadas aos pequenos frutos dos ficus da avenida Afonso Pena, friamente cassados por um prefeito. E a um fruto inchado e fibroso que esborrachava nas madrugadas mornas, quando subia a avenida João Pinheiro.

Na casa do médico Paulo Rosa, defendida de cacos de vidro, morava a jabuticabeira mais redonda e mais bonita de toda a cidade: parecia uma baiana florida. Caco de vidro não quer dizer nada quando se tem dez anos. Em um quintal da rua Professor Morais, descobrimos parreiras carregadas, quando a uva era um luxo importado.

Não morri como ladrão um pouco por sorte e um pouco porque tinha pernas finas e ligeiras. Saqueamos os frutos mais variados em todos os bairros: Funcionários, Santo Antônio, Santa Efigênia, Lourdes... todos. Roubei na rua Pernambuco, na rua Fernandes Tourinho, na avenida Bias Fortes, na rua dos Inconfidentes, na Prefeitura e até no Palácio da Liberdade. Vitaminas não me faltaram quando criança, manga, coco, banana, jabuticaba, romã, ameixa, pêssego, amora, goiaba... o que existisse.

Belo Horizonte era uma cidade vegetal, um jardim de flores e frutos; e é verde e perfumada quando percorro antes de dormir aquelas ruas compridas e os jardins pasmados pelas rosas.

paulo-mendes-campos
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