A aurora de nossas vidas

Crianças apreciando o arco-íris, chácara Arara, Londrina-PR, 1950. Foto de Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles.

“Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade”, disse Clarice Lispector ao mascar chiclete pela primeira vez. Como se vê, para a nossa sorte, desde criança a escritora era dada a entraves filosóficos. Naquele Recife da década de 1920, chiclete era artigo de luxo – uma só pastilha custava o mesmo que uma porção de balas. Na matemática infantil, a iguaria era inalcançável. Foi a irmã mais velha que poupou trocados e presenteou a novidade para Clarice. Junto com o doce, veio uma advertência gravíssima: “Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida inteira”.

Perplexa, a pequena quase não acreditou no milagre. Ela, que tantas vezes “tirava da boca uma bala ainda inteira para chupar depois”, agora tinha um “elixir do longo prazer” à disposição. Depois de colocá-lo na língua “com delicadeza”, pediu orientações para os próximos passos, zelosa de não “errar no ritual que certamente deveria haver”. “Agora mastigue para sempre”, instruiu a irmã. Sem saber bem o motivo, Clarice perdeu o brilho da face. Mascando aquele “puxa-puxa cinzento de borracha”, que começou docinho e depois ficou sem “gosto de nada”, foi tomada por uma espécie de pavor, “como se tem diante da ideia de eternidade ou de infinito”.

Apesar do Medo da eternidade, a menina “mastigava obedientemente, sem parar”. Já não sentia prazer, só aflição. E sem poder “confessar que não estava à altura da eternidade”, deu um jeito disfarçado de cuspir a maçaroca. Fingindo “espanto e tristeza”, lamentou que a bala tivesse acabado. A irmã, expert em mastigação, repetiu que o chiclete não acabava nunca – o dela mesmo só tinha trégua na hora de dormir, quando o pregava na cama –, e consolou a pequena, prometendo-lhe um dia outra goma cor-de-rosa. Clarice suspirou aliviada, “sem o peso da eternidade” sobre seus ombrinhos miúdos – pelo menos por algum tempo.

Claro que nem toda criança reflete sobre conceitos abstratos quando chupa uma bala. No geral, estão mais preocupadas em descobrir seu espaço no mundo, testando limites e desafiando autoridades. Foi o que aconteceu com o menino da história de Fernando Sabino. Arrastando uma cadeira pela sala, levou um pito do pai: “Para com esse barulho, meu filho”. Aos três anos, ele “já sabia reagir como homem ao impacto das grandes injustiças paternas: não estava fazendo barulho, estava só empurrando uma cadeira”. “Pois então para de empurrar a cadeira”, insistiu o genitor. Contrariado, o garoto anunciou sua Fuga. Era o que restava diante de tamanha violação de direitos. O pai, distraído, “não reparou que ele juntava ação às palavras”, enrolando suas coisinhas num lenço: “um caminhão de madeira com apenas três rodas, um pedaço de biscoito, uma chave”, metade de “uma tesourinha enferrujada” e “um botão amarrado num barbante”.

Quando se deu conta do silêncio que se instalou na sala, “o pai olhou ao redor e não viu o menino”, só a porta aberta. Correu até a esquina e “teve tempo de vê-lo ao longe, caminhando cabisbaixo ao longo do muro”. Pelo caminho, foi se formando um rastro de tristeza com os pertences que caíam da trouxinha. O pai o chamou, “mas ele apertou o passinho, abriu a correr em direção à avenida, como disposto a atirar-se diante do lotação que se aproximava”. O ônibus “deu uma freada brusca” e o menino “arrepiou carreira” com o som dos pneus cantando. O pai “o arrebanhou com o braço” rapidinho, apertando-o contra o peito. De volta à sala, trancou a porta da rua e pediu que o filho ficasse quieto, pois estava trabalhando. “Fico, mas vou empurrar esta cadeira” – e a barulheira recomeçou.

A primeira infância, geralmente, é menos turbulenta. Os bebês costumam ter “a serena certeza de que têm o mundo a seu favor”. Acham, ainda, que “tudo no universo foi disposto” para servi-los. E por isso sorriem e se entregam inteiros, algo que os mais vividos relutam em fazer. Enquanto distraía uma bebê, de repente Otto Lara Resende se deu conta de que andou malbaratando seu “tempo atrás de bagatelas”, preocupado demais com “brigas de homem” e “tempestade em copo d’água”, pois só agora tinha percebido, por causa das gargalhadas da recém-nascida, que a palavra “perereca” era engraçada.

“Digo perereca e ela ri.” Deve ser porque “a palavra pula. Pula e pulula”, com a repetição do “e” aberto. Otto experimentou outras palavras, sem sucesso: “Digo tatu. Tatu é uma palavra triste. Fechada em copas”. Tentou repetir “devagarinho, como se fossem quatro e não duas sílabas”. Ta-a-tu-u. Nada. Interessado pelas regras da brincadeira, o cronista mergulhou nos “olhos de gato” da mocinha, que emanavam uma luz de um colorido diferente, fruto de “uma aliança com a inocência”, que bem poderia ser “a oitava cor do arco-íris”.

Jogando sério, Otto testou outras reações. Sempre que tossia, ela piscava. E nesse passatempo reativo, o cronista foi rememorando o próprio tempo de garoto, pois vinha “de longe um eco de outra infância”, a infância de “um antiquíssimo menino” a quem Otto não deu a mão. “Reminiscências, remorsos. Um só e mesmo sentimento que morde.” As atenções voltaram à menina apenas quando os óculos de Otto estavam ameaçados pelas mãozinhas curiosas, determinadas a fisgar aquele “pedaço de cara”. E, assim que conseguiu, desatou a rir novamente.

As Lembranças da infância são mesmo implacáveis e acometeram também Rubem Braga, quando, certa vez, resolveu visitar o que sobrou da fazenda de seu velho avô, Manuel Joaquim Coelho. “Já desmantelado e em ruínas”, o casarão ficava em Boa Esperança, a quase 300 quilômetros de Vitória, no Espírito Santo. Nada estava no lugar, com exceção de uma “grande cerca viva de bambu”. Desolado ao se deparar com um mundo desfeito, Braga ia se retirando quando viu descer o ribeirão uma pata branca “capitaneando sua frota de patinhos amarelos” – a mesmíssima cena que sempre observava menino, nas férias de inverno, período em que “esses inocentes animais costumavam fazer seus ninhos em uma ilha do rio, mais para cima”, e depois desciam de volta para a fazenda “quando os patinhos nasciam”. “E como suas avós há 35 anos atrás”, mais uma pata “deixou a correnteza e aportou, com sua ninhada, no velho quintal da fazenda”.

Tudo daquele tempo passara – “a casa, muitos homens, cães, cavalos, grandes árvores”. Só “a fragilidade dos bambus e o instinto humilde das patas” restituíam a infância do Velho Braga. Como é bom saber que algumas coisas perduram, e que “amanhã alguém sentirá alguma coisa indefinivelmente ligada” ao que sentimos ontem, “e que novas gerações de bambus e de patinhos amarelos voltarão a viver e crescer na doçura das tardes da Boa Esperança”.