Na minha última crônica eu contei a visita que fiz à fazenda de meu avô materno. Essa crônica não foi escrita agora, mas há muitos meses, quase um ano atrás. Não foi publicada na ocasião; entregue ao Correio da Manhã, foi para a mesa do redator-chefe, e lá se perdeu. Eu mesmo não notei que ela não havia sido publicada. Só agora Antônio Callado, sentando-se à velha mesa de Costa Rego, foi encontrá-la, perdida entre velhos papéis.

Se me perguntassem se eu havia escrito sobre essa fazenda do velho Coelho eu não saberia responder com certeza. Lembro-me da emoção que tive ao rever, já desmantelado e em ruínas, o casarão a que não voltava desde a infância. Eu viajava com meu amigo Carybé, entediadamente solidário, na sua grande paciência, com esta minha fantasia de uma excursão à infância. Lembro-me que de outra feita procuramos outra fazenda, a de meu tio Cristóvão, onde passei muitas férias de inverno; e no caminho eu contava para ele que ideia eu fazia da fazenda, as casas, o moinho, as árvores — e me lembrei, por acaso, de um detalhe mínimo: às vezes, à tardinha, aparecia, descendo o ribeirão, uma pata com vários patinhos amarelos nadando atrás dela. Esses inocentes animais costumavam fazer seus ninhos em uma ilha do rio, mais para cima; mas quando os patinhos nasciam, voltavam para a fazenda.

Quando chegamos à Boa Esperança, achei a casa diferente e procurei em vão algumas grandes árvores de que eu me lembrava. Apenas a grande cerca viva de bambu estava no mesmo lugar. Olhei o porão, os morros, o remanso do rio onde eu pescava. E já ia me retirando com melancolia quando Carybé me bateu no ombro e me apontou o ribeirão, naquele instante mesmo, na doçura da tardinha, uma pata branca descia o rio capitaneando sua frota de patinhos amarelos. E como suas avós há 35 anos atrás, ao passar diante da casa grande ela deixou a correnteza e aportou, com sua ninhada, no velho quintal da fazenda.

A casa, muitos homens, cães, cavalos, grandes árvores, tudo passara, tudo mudara na fazenda. Apenas a fragilidade dos bambus e o instinto humilde das patas me restituía à infância.

Antônio Callado rabiscando alguma coisa e mandando descer minha crônica para a oficina, com o mesmo gesto tranquilo de Costa Rego, me restituiu a fazenda de meu avô, a fazenda morta de meu avô morto. Na sua vida efêmera e frágil, as páginas de jornal são uma teimosa insistência de eternidade. Os homens duram dezenas de anos, as máquinas, o prédio, tudo dura, mas tudo passa. O que fica de um jornal, o que continua sempre até o fim, é esse indefinível espírito que nasce com ele e que se entretém de um quase nada, como o bambual que se renova e a pata que repete o mesmo gesto humilde e necessário.

Que eu deixe as colunas do Correio e morra, como já morreram tantos que viveram na velha fazenda. É bom pensar que amanhã alguém sentirá alguma coisa indefinivelmente ligada ao que eu senti, que o jornal guardará sempre sua imprecisa, flutuante, mas iniludível personalidade, e que novas gerações de bambus e de patinhos amarelos voltarão a viver e crescer na doçura das tardes da Boa Esperança.

rubem-braga
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