RIO DE JANEIRO Digo perereca e ela ri. Não sei o que fiz todo esse tempo para só agora perceber que perereca, a simples palavra, é engraçada. Estive distraído. Deixei de lado o essencial, para me entreter com o transitório. O contingente. Malbaratei meu tempo atrás de bagatelas. Nonada. Quantas vezes alvejei o vazio. Brigas de homem, tempestade em copo d'água. Ainda há pouco, dia-hoje, olhava longe o difuso horizonte.

Essa remota linha de circunstâncias que me ignoram. Agora, não. Estou aqui, determinado. Digo tatu. Tatu é uma palavra triste. Fechada em copas. Repito devagarinho, como se fossem quatro e não duas sílabas. Tatu. E ela não ri. Volto à perereca. É a nossa palavra de passe, hoje. Será o e aberto? Três vezes o mesmo som. A palavra pula. Pula e pulula. Salta a perereca no brejo. Anterior à palavra, estou de volta ao princípio. Liberto, enfim.

Olho fixo os seus olhos. Jogamos sério. Se tusso, ela pisca. Então tusso. E ela pisca, incontinente. Estou todo aqui, mas vem de longe um eco de outra infância. Tatu, digo e repito. Tatu, tatu, tatu. Como um casaco, a palavra vira pelo avesso. Tuta. O antiquíssimo menino, a quem não dei a mão. Mas nada de me dissipar. Reminiscências, remorsos. Um só e mesmo sentimento que morde. Retorno inteiro para dentro de seus olhos de gato. Sua luz.

Tem cor, essa luz. A oitava cor do arco-íris. Uma aliança com a inocência. Por isto está agora tão séria. Perereca. E ela não ouve. Já não tem a mãozinha nervosa de outro dia. Coordena as duas mãos. Afinal, são seis meses, hoje. Olhos e mãos, concatenada, se concentra no alvo. Deitadinha no moisés, já não me vê. Vê os óculos. Sabe pegar, puxar, segurar. Um pedaço da cara que sai. Está pensativa. Súbito, me flagra a um palmo de seus olhos. E ri, conivente.

Cúmplices de um jogo, é ela quem impõe a regra. Até vir a fome ou o sono, não vai enjoar da perereca que inventei. Que inventamos. Ela comanda, nesse à-vontade de total confiança. A serena certeza de que tem o mundo a seu favor. Tudo no universo foi disposto para servi-la. E se entrega, inteira. Sua majestade reina, entre harmonias. Cercada de afeições, desenhada em paz, mais que fisionomia, já tem perfil. E sorri. Está na minha hora de voltar a ser sério. Perereca, digo, convicto.

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