Pequeno engraxate, São Paulo-SP, 1940 circa. Foto de Hildegard Rosenthal/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Que Rubem Braga foi um de nossos mais líricos cronistas, todo mundo sabe. Com aparente simplicidade, era capaz de revelar beleza em gestos que nossa vista fatigada deixa escapar. O que nem todos se lembram é que, ao mesmo tempo em que falava de infância, amores e amigos, o sabiá da crônica bicava autoridades e sobrevoava problemas sociais, em tom de denúncia. Na verdade, para ele, poesia e justiça comunitária não são contradições – o interesse pelas coisas singelas da vida, o sentimento de irmandade com os pobres e a indignação com a miséria vêm da mesmíssima raiz de humildade. É uma maneira de ver e de estar diante do mundo.
Homem de esquerda, foi um crítico feroz de Getúlio Vargas e sofreu com a perseguição do Estado Novo. Chegou a ser preso e, para fugir da polícia, mudava de endereço constantemente. Durante períodos de cerco mais apertado, com o nome marcado na imprensa, o jeito era viver de biscates. Escreveu anúncios publicitários para a Gillette, por exemplo, e atuou até mesmo no mercado de pedras semipreciosas – no Rio, foi representante comercial de uma joalheria de Belo Horizonte. Improvisos que os amigos arrumavam para seu sustento.
Em 1947, meses depois da cassação do Partido Comunista do Brasil, Braga foi um dos signatários fundadores do Partido Socialista Brasileiro. Embora não tenha atuado propriamente na política, a vida toda usou o espaço da sua literatura também para chamar a atenção para questões sociais – ora de modo mais panfletário, em defesa de causas como a reforma agrária e a nacionalização da extração do petróleo, ora de maneira mais sutil, humanizando desvalidos invisíveis. Pense, por exemplo, na crônica “Luto da família Silva”, originalmente publicada com o nome só de “A família Silva”:
“A Assistência foi chamada. Veio tinindo. Um homem estava deitado na calçada. Uma poça de sangue. A Assistência voltou vazia. O homem estava morto. O cadáver foi removido para o necrotério.” No jornal, o cronista descobre o nome do falecido: João da Silva. E a crônica assume, então, forma de carta ao ilustre desconhecido. “Neste momento em que seu corpo vai baixar à vala comum, nós, seus amigos e seus irmãos, vimos lhe prestar esta homenagem. Nós somos os joões da silva.”
A família Silva, diz o cronista, não tem renome: “Quando o Brasil foi colonizado, nós éramos os degredados. Depois fomos os índios. Depois fomos os negros. Depois fomos imigrantes, mestiços”. No fundo, “não temos a mínima importância. Trabalhamos, andamos pela rua e morremos. Saímos da vala comum da vida para o mesmo local da morte”. Os joões da silva, trabalhadores, são a base da sociedade: “Nossa família quebra pedra, faz telhas de barro, laça os bois, levanta os prédios, conduz os bondes, enrola o tapete do circo, enche os porões dos navios, conta o dinheiro dos bancos, faz os jornais, serve no Exército e na Marinha”. Mesmo assim, porque os Silva estão sempre por baixo, João foi enterrado em vala comum – “Na vala comum da miséria. Na vala comum da glória, João da Silva. Porque nossa família um dia há de subir na política”.
A noção de classes perpassa toda a obra de Rubem Braga. Quando publicou “Manifesto”, o cronista observava da janela os operários de um prédio em construção. Consciente de que todo ofício se soma à completude de uma sociedade, Braga chega a discretamente se emocionar por aquele trabalho manual e honesto: os carregamentos de tábuas, as batidas de martelo, as formas de cimento, a pá, a serra de madeira, um homem que arrisca a vida na “precária torre do enguiçado elevador”. “Parece um homem normal; vede, porém, o que faz.” Dali a uns cinco dias, “tereis acabado o esqueleto do segundo andar e então me olhareis de cima. E ireis aos poucos subindo para o céu, vós que começastes a trabalhar em um buraco do chão”. Em breve, o prédio estará pronto. Aí, então, os trabalhadores serão desalojados daquele “precário pouso e devolvidos às vossas favelas”. Voltarão tão pobres quanto antes, pois tudo que ganharam será preciso gastar. Na verdade, voltarão ainda mais pobres, pois “tereis gastado algo que ninguém vos paga, que é a força de vossos braços, a mocidade de vossos corpos”. Se ao prédio retornarem, serão barrados por outro homem – um segurança, representante do proprietário, “poderoso senhor que se apoia na mais sólida das ficções, a que chama propriedade”. E nada mais restará ao trabalhador, com “o ouvido embotado” e a “lembrança de muita serragem e pó” nos pulmões.
Às vezes, a questão parece tão absurda que Braga lança mão da ironia, como em “De bois”: “Eu faço crônicas, você faz tijolos, sapatos ou intervenções cirúrgicas, ali o José Olympio faz livros, acolá o pedreiro Waldemar faz casa; enfim cada um de nós tem seu jeito de ganhar a vida fazendo ou fingindo fazer alguma coisa, produzindo cebolas, tecidos ou sambas – pois é preciso de tudo para fazer um mundo”. Nossas diferenças também aparecem no trato com o dinheiro, uns mais precavidos que outros, de modo que cabe a cada um “bater um papo com o gerente do banco, reformar seu papagaio, safar sua onça”. O padre, o militar, o lavrador, o industrial, o português da esquina, a parteira – todos, “menos o pecuarista”.
Isso porque, em 1954, o Senado tinha acabado “de confirmar uma tradição das mais interessantes desta república: dívida de pecuarista quem paga é o governo. Isto é: somos nós todos”. Para quitar os bois, o povo precisa fazer uma vaquinha. “Nunca nenhuma classe teve uma tamanha carne assada.” O governo federal, diz, comove-se tanto diante dos bois que paga tudo: “até os juros, as despesas judiciais ou extrajudiciais, os honorários dos advogados”. Se na Índia a vaca é um animal sagrado, no Brasil o protegido é seu dono.
A cada bicada indignada do sabiá, o desejo de um mundo mais justo transparece. De uma realidade menos penosa e mais simples, em que o direito à felicidade seja alcançado pelo trabalho honesto e pela união entre os homens. O desejo de viver em uma sociedade em que criança alguma precise trocar a meninice pelo trabalho, que desde cedo se impõe, como anotou em “Infância”. Afinal, como disse em “Ricos”, “a vida deveria ser boa para toda gente: o que é insultuoso é que ela seja apenas para alguns”.
Nota do Editor: Aos interessados em se aprofundar no assunto, recomendamos a leitura do ensaio “A crítica social em Rubem Braga”, da pesquisadora Ana Karla Dubiela, recentemente adicionado à seção “Artes da crônica” deste Portal, onde publicamos artigos e ensaios sobre o gênero.