Eu faço crônicas, você faz tijolos, sapatos ou intervenções cirúrgicas, ali o José Olympio faz livros, acolá o pedreiro Waldemar faz casa; enfim cada um de nós tem seu jeito de ganhar a vida fazendo ou fingindo fazer alguma coisa, produzindo cebolas, tecidos ou sambas — pois é preciso de tudo para fazer um mundo. E como somos diferentes de nascença, de sorte, de jeito, de temperamento — um guarda dinheiro, outro gasta demais e muitos fazem dívidas.

Está visto que isso é um assunto pessoal; a cada um incumbe ir conversar com seu cadáver, bater um papo com o gerente do banco, reformar seu papagaio, safar sua onça. O industrial, o padre, o lavrador, o militar, o português da esquina, a parteira — todos fazem isso.

Menos o pecuarista. O Senado acaba de confirmar uma tradição das mais interessantes desta república: dívida de pecuarista quem paga é o governo. Isto é: somos nós todos. No fundo, o projeto 130, deste ano, da Câmara dos Deputados, aprovado pelo Senado, resolve isto: nós todos fazemos uma vaquinha para pagar os bois.

Sabe Deus em que reside o mistério desse privilégio vacum. O governo federal comove-se diante dos bois, e paga tudo: até os juros, as despesas judiciais ou extrajudiciais, os honorários dos advogados. Nunca nenhuma classe teve uma tamanha carne assada.

Dizem que na Índia o boi é animal sagrado. No Brasil não é: no Brasil o animal sagrado é o pecuarista.

Ele dorme feliz na sombra do bois.

rubem-braga
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