A crítica social em Rubem Braga. Impressões de estudiosos e cronistas

Homens em frente a tapumes no bairro da Lapa, Rio de Janeiro-RJ, 1955 circa. Foto de José Medeiros/ Acervo Instituto Moreira Salles.

O lirismo em prosa da obra de Rubem Braga, que chamou a atenção de estudiosos da literatura, como Afrânio Coutinho, Antonio Candido, Jorge de Sá, Davi Arrigucci Jr. e Affonso Romano de Sant’Anna, entre outros, permeia os mais variados temas. É ainda mais patente nas histórias românticas, nas reminiscências da infância, no contato com a natureza ou na análise da própria poesia e da prosa. No entanto, é ainda mais curioso como o cronista deixa aflorar esse mesmo lirismo em temas áridos como os bastidores da guerra na Itália, em 1945, ou na crítica social, que, em maior ou menor número de crônicas, está presente em suas coletâneas.

Na obra que reúne o maior número de crônicas de Rubem Braga, 200 Crônicas escolhidas (já em sua 22ª edição), ele e o escritor Fernando Sabino selecionaram os melhores textos escritos entre 1935 e 1977. A coletânea, portanto, representa um passeio por 42 anos de produção diária e ali estão as crônicas que o próprio autor considera mais importantes no conjunto de sua obra.

Dos nove livros que serviram de fonte para a seleção (O conde e o passarinho; O morro do isolamento; Com a FEB na Itália; Um pé de milho; O homem rouco; A borboleta amarela; A cidade e a roça; Ai de ti, Copacabana e A traição das elegantes), um deles se destaca pelo número de crônicas escolhidas. Das duzentas crônicas, 51 delas, ou seja, mais de um quarto da coletânea, foram pinçadas de A traição das elegantes. Das 60 crônicas publicadas em A traição das elegantes, apenas nove não estão em 200 Crônicas escolhidas – o maior aproveitamento entre os nove títulos pesquisados para a escolha, o que poderia ser interpretado como sendo aquele o livro pelo qual o autor teria maior apreço, merecendo, portanto, maior espaço na coletânea. O autor, no entanto, declarou que Ai de ti, Copacabana é o seu livro predileto, simplesmente por ter sido o mais vendido.

Publicado em 1967, A traição das elegantes, como sugere o próprio título (da mesma forma que Ai de ti, Copacabana), tem um forte viés de crítica social. A crônica-título, escrita em janeiro de 1967, não se reporta abertamente ao período político em que foi escrita – três anos após o golpe militar que deu início à perda de liberdade de expressão e véspera do AI-5, que seria imposto no ano seguinte, oficializando a repressão no Brasil. O texto, porém, penetra em uma brecha apertada da censura, ao comentar um fato aparentemente sem importância, desses que a gente vê no cotidiano do colunismo social. Rubem Braga vê na revista Manchete uma foto das “Mais Elegantes de 1967”. E o choque entre a futilidade da publicação e uma sociedade ainda atônita diante das mudanças políticas que culminaram com a restrição da democracia durante tantos anos provocou um Rubem Braga irônico, sarcástico, que até esquece sua rejeição aos adjetivos e abusa dos predicados que identificam as damas da alta sociedade carioca do final dos anos 60:

"As 'Mais Elegantes' estão às vezes francamente ridículas, às vezes com um ar boboca e jeca, às vezes simplesmente banais. (...) Mas aconteceu alguma coisa, e essas damas que eram para ser como símbolos supremos de elegância e distinção, mitos e sonhos da plebe, Algo as carimbou na testa com o 'Mané, Tekel, Farés' da vulgaridade pomposa e fora de tempo."

Sob o disfarce de uma falsa preocupação com as senhoras elegantes, esteio de sonho para as moçoilas de classes sociais menos favorecidas, o cronista utiliza a foto que teria desfigurado as legítimas representantes da elite econômica e cultural da época, para fazer ele mesmo o retrato de uma sociedade tristemente ameaçada de perder sua essência em nome da sensação de prosperidade do chamado “milagre brasileiro”, da industrialização e do consumo. Durante os “anos dourados”, o ministro da Fazenda Delfim Neto defendia a ideia de que “o bolo tem que crescer para ser distribuído”, para justificar os baixos salários que destoavam do crescimento econômico. Rubem Braga clarifica a diferença entre as promessas do governo militar e o que é real, através da desfiguração das ricas senhoras que, naquele instante, não mais revelavam a face pródiga, saudável e bela da elite brasileira, com a qual sonhava grande parte da população menos abastada, mas o rosto de uma nação cansada de falsas esperanças, que tem seus “olhos fixos a fitar o nada, estupidamente o nada”, tal qual o semblante das mais elegantes, na revista Manchete:

"A culpa será talvez da 'Revolução', que tornou os ricos tão seguros de si mesmos, tão insensatos e vitoriosos e ostentadores e fátuos, que suas mulheres perderam o desconfiômetro, e elas envolvem os corpos em qualquer pano berrante que melífluos costureiros desenham e dizem – 'a moda é isto' – e se postam ali, diante da população cada vez mais pobre, neste país em que minguam o pão e o remédio, e se suprimem as liberdades – coloridas e funéreas, ajaezadas e ocas, vazias e duras, sem espírito e sem graça alguma."

Habilmente, o cronista flagra a queda das máscaras – políticas, sociais, econômicas e culturais – representadas no semblante daquelas mulheres que, até ali, haviam sido a própria face da esperança de bem-estar social:

"Direis que essa derrota das 'Mais Elegantes' não importa... Importa! As moças pobres (...) aprenderam a se mirar nessas deusas, a suspirar invejando-as, mas admirando-as; era o charme dessas senhoras, suas festas, suas viagens, suas legendas douradas de luxo, que romantizavam a riqueza e o desnível social. (...) Elas tinham o dever de continuar maravilhosas. (...) Mas houve aquele momento em que um vento escarninho as desfigurou em plebeias enfeitadas, em caricaturas de si mesmas, espaventosas e frias. "

A crônica “Os pobres homens ricos” foi publicada no mesmo livro, mas escrita seis anos antes, em maio de 1961. Fala do “apetite social” de uma pequena parcela dos homens ricos, que se preocupa com as desigualdades sociais latentes e se culpa pela bonança em que vive. Nessa crônica, Rubem Braga se despe um pouco da fina ironia de "A traição das elegantes" e reconhece o dilema que a abundância traz para os homens de bem. E cita Bernard Shaw:

“Homens ricos ou aristocratas com um desenvolvido senso de vida (...) têm enormes apetites sociais... não se contentam com belas casas, querem belas cidades... não se contentam com esposas cheias de diamantes e filhas em flor; queixam-se porque a operária está mal vestida, a lavadeira cheira a gim, a costureira é anêmica, e porque todo homem que encontram não é um amigo...".

Se, por um lado, Rubem Braga absolve certos homens ricos de culpa pelas mazelas sociais, por outro insiste em cobrar do governo a responsabilidade pela formação de uma sociedade menos injusta. Ambos, porém, parecem caminhar na contramão do que o narrador espera da vida:

"Nossos homens de governo têm uma pasmosa desambição de governar (...). Homens públicos, sem sentimento público, homens ricos que são, no fundo, pobres-diabos – que não descobriram ainda que a grande vantagem real de ter dinheiro é não ter que pensar, a todo momento, em dinheiro...".

O cronista une governo, serviço público e os “homens ricos” como exemplos do desgaste social provocado pelo apego ao dinheiro, ao poder e às aparências. Nas duas crônicas (“A traição das elegantes” e “Os pobres homens ricos”), a crítica social tem como alvo as duas faces de uma mesma moeda: a “nobreza” carioca dos anos 60. Entretanto, mesmo escritos em diferentes momentos políticos e analisando personalidades opostas dos protagonistas de uma mesma classe social, os textos têm em comum a preocupação social do narrador e denunciam uma ideologia de esquerda. Essa ideologia, comprovável por ser o autor um dos fundadores do Partido Socialista Brasileiro (PSB), mantém uma equidistância entre o fato, a opinião e a literatura, fazendo com que esta se sobreponha através do lirismo e/ou do sarcasmo. Percebe-se claramente “A traição das elegantes” pelos “Pobres homens ricos”, isto é, as ricas senhoras são postas em questão, não só pelos que as admiram e invejam, mas pelos homens de sua própria casta. No cruzamento das duas crônicas, observamos que houve “uma traição” da elegância e do supérfluo (da importância do ter) pelo bom sentimento de alguns ricos que discutem valores e se indignam com as desigualdades sociais (pela importância do ser).

Mas nem sempre essa distância entre o Rubem Braga socialista e o Rubem Braga cronista tem uma linha divisória firme. Um exemplo é a crônica “Luto da família Silva”, publicada no seu primeiro livro de crônicas, O conde e o passarinho, em 1936, mas escrita em junho de 1935. No ano da publicação da coletânea, a tônica social também permeava best-sellers como E o vento levou (1936), de Margaret Mitchel, que fez sucesso na literatura e na sua adaptação para o cinema, e Tempos modernos (1936), filme de sucesso em que Charles Chaplin satirizava a sociedade da era industrial. Ao se referir ao “Luto da família Silva”, Antonio Candido confirma esse estreitamento entre a arte e o que ele denomina “militância” política praticada por Rubem Braga:

"São raros os momentos de utilização da crônica como militância, isto é, participação decidida na realidade com o intuito de mudá-la, como acontece em “Luto da família Silva”, de Rubem Braga – abordando a grande maioria dos homens que sua e pena para fazer funcionar a máquina da sociedade em benefício de uns poucos."

Antonio Candido diz ainda que o “Luto da família Silva” é um bom exemplo de como um texto pode discutir e incutir coisas sérias e “empenhadas”, através “de um ziguezague de uma aparente conversa fiada”. Ainda livre do olhar atento da censura, Rubem Braga relata as sagas de tantas famílias Silvas que existem Brasil afora e que, embora sejam responsáveis pelo árduo construir de uma nação, recebem como prêmio “a vala comum da miséria”, a exclusão:

"Quando o Brasil foi colonizado, nós éramos os degredados. Depois fomos os índios. Depois fomos os negros. Depois fomos imigrantes, mestiços. Somos os Silva. (...) Não temos a mínima importância. (...) A gente de nossa família trabalha nas plantações de mate, nos pastos, nas fazendas, nas usinas, nas praias, nas fábricas, nas minas, nos balcões, no mato, nas cozinhas, em todo lugar onde se trabalha. (...) Apesar disso, João da Silva, nós temos de enterrar você é mesmo na vala comum. Na vala comum da miséria. Na vala comum da glória, João da Silva. Porque nossa família um dia há de subir na política...".

O narrador se põe, contraditoriamente, em dois papéis opostos: o de carrasco (“nós temos de enterrar você é mesmo na vala comum”), e membro da mesma família, companheiro de infortúnio, que tem uma clara ambição (“porque nossa família um dia há de subir na política”). O tom profético de uma tal família Silva que chega ao poder no Brasil se alia a uma forte transcendência do tempo que desnuda, fielmente, muitos acontecimentos que ainda perduram no início do século XXI – mais de 70 após sua escrita. As duas características são próprias das obras que se eternizam por trazerem em si os dilemas sociais que atravessam os séculos.

Em “O padeiro”, ao contrário da forma direta e incisiva de “Luto da família Silva”, a crítica social é velada, sutil, resignada e até bem humorada. Difere, também, da crônica-título da coletânea Ai de ti, Copacabana (1960), onde os comentários ácidos sobre a burguesia da época são fundamentados e objetivos. Escrita em 1956, portanto quatro anos antes de sua publicação, “O padeiro” conta a história de um homem que, a pretexto de uma certa greve de donos de padaria, lembra-se de um vendedor de pães que conhecera há muito tempo e que costumava bater em sua porta, todas as manhãs:

"Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando: – Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a ideia de gritar aquilo? 'Então você não é ninguém?' Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: 'não é ninguém, não senhora, é o padeiro'. Assim ficara sabendo que não era ninguém."

A singeleza da situação, a humildade inocente do padeiro, é justamente o que perfura, vagarosa e firmemente, a alma de concreto do leitor mais insensível. Que sociedade é essa que "ensina" um trabalhador, que lhe presta um serviço diário, a não ser ninguém? É o que parece interrogar o assustado narrador, que vê a si mesmo como um arrogante cronista, que se sente importante, se sente gente, pelo fato de assinar textos em um jornal: “Recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; não é ninguém, é o padeiro". Davi Arrigucci Jr. se vale dessa crônica para fazer uma análise mais abrangente da prosa em Rubem Braga:

"Sua disposição intrínseca para a percepção do poético no cotidiano popular, além da tendência modernista, via Bandeira, só pode ter sido facilitada e estimulada pela sua formação interiorana, com seus elementos de uma experiência mais socializada, no espaço rústico, à beira-rio ou à beira-mar, pela proximidade das pessoas humildes que tanto aparecem nas crônicas. De tudo isso, decerto, o cronista aprendeu um pouco sobre a vida e seu ofício de escritor (...). Só assim se explicam histórias como aquela do padeiro."

No aprendizado sobre a vida e seu ofício de escritor, vez por outra Rubem Braga parece disposto a cortar a própria carne, como ocorre na autocrítica de “O padeiro”. Em “Os jornais”, publicada em 1955, na coletânea A borboleta amarela, e escrita em 1951, quando a imprensa noticiava a paz e a aliança militar entre os Estados Unidos e o Japão, o cronista teceu duros comentários sobre a função do “quarto poder”. E revelando mais uma vez o seu sonho de simplicidade e sua ideologia política, insinua porque ele veio a se destacar mais como cronista do que como repórter: sua veia literária pulsou mais forte que a jornalística:

"– Chega! Houve um desastre de trem na França, um acidente de mina na Inglaterra, um surto de peste na Índia (...). Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo."

Dessa vez, o cronista é taxativo, mas quem se revolta ante as matérias de jornal é um amigo do narrador. Através dele, o autor questiona o que é notícia, o que merece ser publicado por ter “conteúdo jornalístico”. Levando ainda o leitor a questionar também como seria o mundo se a imprensa usasse os mesmos elementos técnicos para noticiar, por exemplo, o retorno de um trabalhador ao lar, a doce recepção da esposa e a demonstração de carinho que se seguiu – sem faca, tiro ou sangue que garantisse ao fato um “conteúdo jornalístico” para publicação: “Se um repórter redigir essas (...) notas e levá-las a um secretário de redação, será chamado de louco. Porque os jornais noticiam tudo, tudo menos uma coisa tão banal de que ninguém se lembra: a vida...”.

Nas cinco crônicas escolhidas para análise, Rubem Braga usa a linguagem coloquial do jornalismo tradicional, com conteúdos e temas que geralmente não são escolhidos para uma reportagem. O rosto vazio da alta sociedade, a possibilidade de um sentimento nobre entre os ricos, a miséria dos Silva, o anonimato imposto ao padeiro e as mazelas do mundo estampadas nos noticiosos; tudo são peças de um jogo literário chamado crônica. O cotidiano, uma situação curiosa, um sentimento preciso ou vago, o ziguezaguear de pensamentos com destino ignorado, suscitam, direta ou indiretamente, a preocupação social no leitor. E definem o estilo de um cronista e sua atuação como ser social.

Rubem Braga desenvolve constantemente uma característica específica: a metonímia. O grupo das mais elegantes representa uma classe superior visivelmente deslocada do seu trono, com uma imagem patética e artificial da burguesia da época. Mas também representa, por contradição, o sonho distante de “uma população cada vez mais pobre”. Affonso Romano de Sant’Anna desvenda as funções da metonímia, que vão além do estilo literário e alcançam outras áreas do conhecimento:

"A crônica é uma operação metonímica, ou seja, é o texto que toma o particular pelo todo. É o caso de Rubem Braga. Ele pega uma frase do Ibrahim Sued e, através daquela frase, ele vai tecendo um comentário que é muito mais eficiente do que um comentário de um sociólogo ou de um historiador."

O fato de tomar a parte pelo todo, o sentimento individual ou de um pequeno grupo pelo sentimento de uma coletividade, não transfigura a crônica em uma generalização, como se poderia supor à primeira vista. Muito menos, torna-a particular, tradutora de sensações que somente interessam ao personagem e/ou ao narrador que as descreve. Pelo contrário. O leitor se vê diante de, pelo menos, duas possibilidades: de aproximação por afinidade, quando ele se vê no texto, ou estranhamento, quando ele é arrebatado pela leitura de algo que não faz parte de sua realidade individual, mas que o arrebata pela surpresa, pela linguagem ou até mesmo pela diferença no modo de ver a vida. Nos dois casos, Rubem Braga consegue sustentar e surpreender o leitor, através daquilo que Affonso Romano de Sant’Anna define como “choque lírico”, inesperado, ao final da história:

Convocar “o eu do leitor a sair de dentro do leitor” e penetrar no texto, como diz Affonso Romano de Sant’Anna, é uma característica própria da poesia, mas que está presente também na prosa. Seria uma junção de formas, como teoriza o ensaísta, uma “proesia”, ou seja, a poesia na prosa ou prosa poética. Esse lirismo na prosa é justamente um dos pontos mais destacados, na obra de Rubem Braga, pela crítica literária.

Fonte: A traição das elegantes pelos pobres homens ricos: uma leitura da crítica social em Rubem Braga, de Ana Karla Dubiela. EDUFES, 2007, pp. 49-58.

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Ana Karla Dubiela é jornalista, graduada pela Universidade Federal do Ceará. Especialista em Estudos Literários e Culturais (UFC), mestre em Literatura Brasileira (UFC) e doutora em Literatura Comparada (UFF/RJ). Publicou: A traição das elegantes pelos pobres homens ricos - uma leitura da crítica social em Rubem Braga; Um coração postiço a formação da crônica de Rubem Braga entre outros.