Maria, filha de Haruo, e Kazuo Tomita, sobrinho, sítio Tomita, Londrina-PR, 1955. Foto de Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Desapontada, a moça se queixou com o amigo Rubem Braga. Ela tinha conhecido um poeta, chegado do cronista, que nada tinha de poético no convívio. Reclamou que “no tempo em que esteve em sua mesa, não lhe ouviu uma palavra sobre poesia” – pelo contrário. O poeta só falou de sapato, carro e futebol. Nada mais desestimulante para quem esperava ouvir sobre a grande obra de Shakespeare. “Nunca falam os poetas de poesia?”, quis saber.
“Bem, eles falam”, respondeu Braga, também ele um poeta, ainda que bissexto. “Mas acontece que, além de ser um homem como os outros, e sem deixar de sê-lo, ele tem isso de grave e especial que é ser um homem a quem tudo concerne e de tudo tira seu mel e seu fel.” Tudo é matéria do poeta – diferente do motorista, que não se importa com peixes, e do cirurgião, alheio à existência das mangueiras, “ao poeta tudo concerne”. Ele se inspira por um “pedaço de jornal velho que o vento arrasta pelo chão” tanto quanto por aquela “moça que saiu às compras, na manhã fria do bairro, com calças compridas e uma capa de gabardine”. E, ao jornal e à moça, pode acontecer “que tenham de esperar muitos anos para entrar em um verso do poeta, como podem entrar de repente, atravessando um braço de mar de 1938 ou a tarde de um agosto antigo”. Então, quando o “poeta fala de sapatos, de trânsito ou futebol, não está disfarçando”, pois tudo se filtra em sua alma. “Tudo; e com certeza também você, que ele pode ter incorporado silenciosamente, e quando amanhã escrever ‘Uma tarde castanha’, se lembrar de seus cabelos e de sua voz serena.”
Certa vez, um rapazinho de 16 anos pediu que Clarice Lispector anunciasse em sua coluna de jornal a instituição que acabara de fundar: o Clube Nacional de Poesia, diretamente De Vila Isabel para o Brasil. Clarice não acreditava em “poesia clubificada” – afinal, poesia é “apenas uma comunhão solitária com um leitor desconhecido que às vezes se manifesta e por um instante nos aquece o coração cansado pelo esforço de viver”. No entanto, tocada “de forma não clara” pela inocência do rapaz, que “não contente de se fundar a si mesmo na idade já algo experiente de 16 anos, envolve o Brasil inteiro na sua exclamação de tanta boa-fé e ingenuidade”, cedeu. Envergonhada por nunca ter acreditado na razão de um clube de poesia, aderiu ao manifesto. Aí, “com a poesia oficializada pelo moço de Vila Isabel, instauramos o amor como remédio à solidão de quem ousa se individualizar na massa humana”. E, de repente, “por um decreto do rapaz, estamos livres”.
Falando em poetas, difícil não evocar Manuel Bandeira, um de nossos maiores. Em 1966, quando completou 80 anos, o pernambucano recebeu homenagens de vários colegas de ofício, incluindo Rachel de Queiroz, que saudou o aniversariante em sua página de O Cruzeiro. “Li por aí”, diz, “que Manuel além de grande poeta era um homem que se sabia fazer amar”. Provavelmente, esse dom de se fazer amado, “essa ternura que desencadeia nos peitos mais ásperos e menos amadores”, decorreria diretamente de sua obra poética: “É elemento da sua poesia, vem daquela força que ele tem de descobrir o coração da gente e o segurar na sua mão”. É possível. “Mas a gente nunca poderá dizer ao certo. Tudo isso são mistérios, já que o grande mistério é a própria poesia.” Às vezes, poeta e poesia “por tal modo se entrelaçam e se confundem” que “nenhum olho humano poderá discernir onde está cada um”.
Mas, como o leitor bem desconfia, nem só de amores vive um poeta. A vocação para a arte “mete medo” e, às vezes, pode ser “muito perigosa”, como disse Otto Lara Resende, ciente de que A maldição da poesia pode acometer versejadores, sobretudo aspirantes. Por isso, como conselho a um desses novatos, Clarice Lispector sugeriu que também escrevesse prosa. “A grande Clarice sabia de coração o preço que paga um poeta. Então fizesse prosa para se sentir menos isolado. Atirando nos dois alvos, na prosa e no verso, é maior a chance de quebrar o ineditismo. E as cadeias da solidão.” Na trilha árdua da arte, “a maioria acaba numa vida frustrada”. Uma pena. Mas a trajetória costuma valer o esforço. Afinal, “que vocação é mais nobre que a poesia? Sim, o preço é alto. Mais alta, porém, é a poesia”.
Fica combinado, portanto, que a poesia vale o custo. E que um coração atento poderá descobri-la “em romances, crônicas, poemas, ou canções populares”. Ou, ainda, na historinha sobre O galo que nos conta Paulo Mendes Campos. É verdadeira, garante, e aconteceu com um renomado poeta que, voltando para casa de madrugada, “curtindo, além de outros desencantos, a depressão que acompanha os pilequinhos mais exagerados”, ouviu “um som engasgado, metálico, proferido sem dúvida por uma garganta de bicho”. Era um grito de valentia e desespero. “Pelas grades de um aviário”, o poeta enxergou o dono daquele canto “meio desfrutável, meio dramático”. Era um galo “de nobre estatura”, apartado dos outros galináceos e dolorosamente curvado para caber em uma gaiola pequena. Com o despontar da aurora nos beirais, o galo cantava. “Nunca saberemos ao certo o que é a aurora para um galo que se preza”, que a anuncia mesmo preso e humilhado. Esta é uma verdade que “tem uma repercussão física na alma dos galos”. Do mesmo modo, “nunca calcularemos bem o quanto há de épico na alma de um poeta, os mais elegíacos, inclusive”. Este, por exemplo, “sentiu na cena do galo a intensidade de uma tragédia grega” e, subitamente animado “na solidão da madrugada, proferiu ao galo uma apóstofre, de peito erguido, braço levantado com a paixão que um ator colocaria em palavras de Sófocles”. O que declamou para o bicho, o poeta já não se lembrava. “Mas, dissesse o que dissesse, devia estar muito bonito."