Pelas ruas de São Paulo

Rua Direita, Centro, São Paulo-SP, 1953 circa. Foto de Alice Brill/ Acervo Instituto Moreira Salles.

No fim da tarde, depois de passar o dia trabalhando em uma reportagem, Rubem Braga retornou ao apartamento. Era mais um “homem só nesta cidade de São Paulo”. Ligou para dois colegas, ninguém atendeu. Procurou pelo seu caderno de endereços, ou mesmo por uma lista telefônica, e nada. O jeito era sair por conta própria, “sem programa, pelas calçadas formigantes” daquele começo de noite paulistana.

Num “desses cafés movimentados da avenida São João”, O aventureiro entrou e pediu um pastel feito na hora, com os quais costumava, em outros tempos, enganar a fome nas “noites frias, solitárias e sem dinheiro”. Para acompanhar, uma batida. E depois “um sanduíche e mais um pastel e um café”. Saciado, o cronista retomou a caminhada com uma vaga noção de felicidade, deixando-se levar por uma “multidão encapotada” que era engolida pelos “enormes ventres negros” dos cinemas de rua, onde os homens passam “duas horas entretidos de mentiras de outras vidas em outras terras”.

Rubem Braga cruzou com centenas, milhares de rostos, e não reconhecer nenhum lhe deixou “uma tristeza confortável” no peito, uma “doçura melancólica da cidade estranha e grande”. Ele era “um homem calado no meio deles, um desconhecido entre desconhecidos, apenas amparado por essa vaga solidariedade feita de alguma coisa de frágil e ao mesmo tempo de hostil” que une os pedestres. A sensação o transportou para 20 anos atrás, quando esteve em São Paulo pela primeira vez e, entre estranhos, perambulou “docemente uma noite inteira, aprendendo a rua” com seus olhos e pés, “gozando devagar o encanto da cidade que escolhera para viver exatamente porque ali não conhecia ninguém”.

Certa vez, depois de viajar a São Paulo para gravar um programa de televisão, Fernando Sabino e uns amigos do Rio de Janeiro esticaram para um bar nas redondezas do hotel. A noite seria animada, não fosse uma moça interromper o primeiro uísque do cronista para perguntar se ele não se incomodaria de escoltá-la até sua casa – o irmão ficara de buscá-la mas não apareceu, e ela tinha medo de voltar sozinha. “É aqui perto, de táxi é um instante”, assegurou. Como tinha “a pretensão de ser um cavalheiro”, Sabino acedeu, embora “com a vaga suspeita de estar entrando numa fria”.

Tomaram um táxi que “rodava por ruas e mais ruas, dobrava esquinas” e não chegava nunca. No caminho, a moça foi falando no irmão, que tinha todos os livros do escritor. Quando enfim chegaram, ela insistiu para que ele entrasse e conhecesse seu fã. Uma da manhã, pensou, “não era hora de visitar o irmão de ninguém”. Lembrou da “turma lá no bar”, do uísque abandonado, mas acedeu novamente. Seria só um instantinho. O irmão “era um galalau de seus 18 anos” que o “encheu de perguntas” chatas. Assim que pôde, Sabino se desvencilhou da cilada. Tinha tanta pressa para se arrancar dali que sequer aceitou a oferta da mulher de chamar um táxi. “Não é preciso, vou andando, pego um na esquina”, disse, e tchau tchau.

Acontece que a rua não tinha esquina: ela “se prolongava, tortuosa, levando a lugar nenhum”. As casas todas fechadas, um breu, e nem sombra de táxi. Andou alguns quilômetros até encontrar um cruzamento, se meteu “por outra rua, mais outra, outra ainda, e nada: nem uma janela acesa, um botequim ainda aberto, alguém a quem pedir informação”. Sabino estava perdido e não sabia voltar para a casa da moça, muito menos para o bar. Poderia estar “tanto em São Paulo como em Jacarta, na Indonésia”. Foram horas procurando algum ser vivo em vão. E então começou a chover “aquela chuva paulista – fria e chata, fina e densa, que vai molhando aos poucos, como se não fosse nada”. A esmo, ensopado, seguiu sua peregrinação solitária, e o uísque que deixara no bar já lhe “parecia distante como uma alegria da infância”.

Só com o raiar do dia Sabino encontrou seu salvador na figura de um taxista. Finalmente de volta ao hotel, entregou o corpo à cama até duas da tarde. E no almoço, ao reencontrar os amigos no restaurante, ainda teve que ouvir o deboche: “Muito vivo, hein? Nos trocou por coisa melhor para passar a noite”. Qualquer tentativa de explicação seria inútil.

Outro cronista que penou com a garoa paulistana foi Antônio Maria. Garoa, no caso, é modo de falar, porque essa foi a chuva mais forte que ele já tinha visto. Enquanto os pedestres buscavam refúgio nas lojas, o cronista resolveu seguir seu rumo, a pé mesmo. “Já aos primeiros minutos desse prazer de foro íntimo”, sentiu-se só “como um rei”. Um louco na chuva, simplesmente. A água lhe escorria pelo rosto, “entrando pelo nariz e pela boca”, encharcando a roupa e fazendo os sapatos cantarem, “aos guinchos”. Os 120 mil-réis que tinha no bolso se desfizeram. E, na rabeira, a enxurrada trouxe também “pensamentos inesperados e vários”: de repente, sentiu que poderia começar em São Paulo “uma nova existência, sem lembranças de nomes e de paisagens, sem orgulho do avô” pernambucano, “sem uma só vaidade presente ou passada”.

Era mesmo quase outro homem: “deveria, agora, ser uma nova pessoa que se chamasse Clementino, que não sentisse saudades, que não quisesse bem a ninguém, sem casa, sem emprego, sem receita e sem despesa”. Estava descalço, com os sapatos pendurados no dedo, “tremendo de frio, adoecível do peito”, “moralmente nu”, caminhando na chuva com a certeza de “uma pneumonia dupla”, que é mais cara de tratar. De repente, o vidro de uma limusine desceu e revelou uma mulher que o olhava, apreensiva. “Era aquele, exatamente aquele, o momento de começar a ser mendigo, estender-lhe as mãos e pedir”, pensou Maria. No entanto, “em nome de uma alma incorrigível” que regia sua “insensatez física e sentimental”, no lugar das mãos o cronista estendeu-lhe os olhos, que, mudos, pediram “um cobertor e um abraço”. O mesmo olhar carente e vulnerável de sempre, portanto. Pobre Maria. Nem mesmo naquela situação de “resignação e desamparo” Maria pôde se livrar de coisas suas – “a devoção ao carinho novo” continuava “sendo um motivo de persistência e heroísmo”. “Não se curou de nada” sob a chuva de São Paulo. “Das saudades, das manhas, da estultice, da emotividade burguesa, do cultivado apego à sua existência de seresta.” Restava, além de um banho quente, “se conformar, voltar para o hotel, vestir o terno azul e a gravata prateada”.