Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria. Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil,Todavia, 2021, pp. 232-234. Publicada, originalmente, na Revista da Semana, de 20/02/1954.
É a chuva mais forte que caiu em cima de mim e, enquanto homens e mulheres disputam as marquises, correm atrás dos táxis, invadem as lojas, resolvo andar. Visto calça e camisa. Tenho 120 mil-réis em três cédulas sujivelhas de circulação paulista. Já aos primeiros minutos desse prazer de foro íntimo, estou só, como um rei, como um louco, andando na chuva. Molham-se-me os cabelos e a água escorre pelo rosto, entrando pelo nariz e pela boca. Ensopara-se a camisa e a calça, os sapatos começam a encharcar-se e andam aos guinchos. Ponho as mãos no bolso e o dinheiro virou lama. Jogo-o fora e ando. Os pensamentos são inesperados e vários. Poderia começar, aqui, uma nova existência, sem lembranças de nomes e de paisagens, sem orgulho do avô, sem uma só vaidade presente ou passada. Entro na Vinte e Quatro de Maio, dobro a Dom José, volto à avenida e sigo ao longo da Ipiranga. Ocorrem hipóteses esquisitas, como por exemplo a da morte de Sílvio Caldas. Começo a ouvir “Chão de estrelas”, só em orquestra. Os violinos estão fraseando, em massa, aquele pedaço que diz: “Nossas roupas comuns dependuradas/ Na corda qual bandeiras agitadas”. Aí chego a uma saudade e começo a sentir como uma evidência recente: Sílvio Caldas morreu. Todas as estações de rádio estão fazendo o seu necrológio e me convidam para dizer alguma coisa. De mim, esperam palavras importantes e o silêncio se abre em volta como um cordão de isolamento. Minha garganta está cheia de soluços. O som da minha voz é trêmulo, hesitante e digo, apenas: “Sílvio Caboclinho Caldas Aulete, foste a sonoridade que acabou”. Agora, a orquestra modula e os metais estão fazendo a primeira frase de “Faceira”. De repente, fica só o ritmo, enquanto o violoncelo sai de sua dignidade, para solar: “Que eu te conheci, faceira/ Fazendo visagem, passando rasteira” e o piano, com preguiça, responde: “Ô que bom, que bom, que bom”. Chove mais ainda. É necessário tirar os sapatos e pendurá-los no dedo.
A camisa está gelada, ficou transparente e se cola nas costas, agoniando. Tusso. Certamente, terei uma pneumonia dupla, que é mais cara. Devo estar inteiramente louco. Por que imaginar a morte de Sílvio Caldas? Seria um revide ao sentimento geral pela morte de Chico Alves? Antes, devia perguntar: por que estou andando na chuva? Descalço na rua de São Paulo, tremendo de frio, adoecível do peito dentro de meia hora, descubro que a vida de Sílvio Caldas é uma velha canção necessária a todos nós, que sua morte, em moldes trágicos, traria o povo para a rua em procissão de enterro, para cantar — com tubas e bombardinos — no tom mais grave possível a um coral misto, a marcha “As pastorinhas”.
Estou praticamente nu, moralmente nu, caminhando na chuva. Deveria, agora, ser uma nova pessoa que se chamasse Clementino, que não sentisse saudades, que não quisesse bem a ninguém, sem casa, sem emprego, sem receita e sem despesa. Um homem com frio — mais nada — com os lábios descoloridos e as pontas dos dedos engelhadas. Ofereceria todo o meu estado à compaixão do próximo, minhas vestes ao asco e minhas mãos à esmola. E, quando entro numa rua de moradia familiar, uma mulher desce um vidro de limusine e me espia apreensiva. Era aquele, exatamente aquele, o momento de começar a ser mendigo, estender-lhe as mãos e pedir. No entanto, em nome de uma alma incorrigível que rege minha insensatez física e sentimental, em lugar das mãos, estendo-lhe meus olhos que, mudos, lhe pedem um cobertor e um abraço. Queria ser um homem integrado na miséria e fracassa o mendigo na hora em que a chuva e o frio seriam o seu melhor disfarce de pobreza. Fracassam as aparências de resignação e desamparo, porque a devoção ao carinho novo continua sendo um motivo de persistência e heroísmo. Um homem assim não deve começar de novo. Não se livrou, não se curou de nada: das saudades, das manhas, da estultice, da emotividade burguesa, do cultivado apego à sua existência de seresta. Tem que se conformar, voltar para o hotel, vestir o terno azul e a gravata prateada.