Fonte: A falta que ela me faz. 3ª. ed., Record, 1980, pp.97-100.

Tínhamos comparecido a um programa de televisão em São Paulo. Depois nós, os do Rio, passamos a um bar das vizinhanças, devidamente bem acompanhados. A noite seria animada.

Eu mal havia provado o primeiro uísque, a moça a meu lado me perguntou se me incomodaria de levá-la em casa. O irmão ficara de vir buscá-la e até então não havia aparecido — ela tinha medo de voltar sozinha:

— É aqui perto, de táxi é um instante.

Como eu tivesse a pretensão de ser um cavalheiro, acedi, embora com a vaga suspeita de estar entrando numa fria.

Não me pareceu que fosse tão perto assim: o táxi rodava por ruas e mais ruas, dobrava esquinas, e a moça sempre falando no tal irmão, gostaria tanto que eu o conhecesse, estudava economia mas tinha muito jeito para escrever:

— Já leu todos os seus livros.

Enfim, chegamos: o táxi parou em frente a uma casa modesta de um bairro qualquer nos intestinos de São Paulo. Ela se assanhou, quando viu a luz acesa:

— Meu irmão já chegou. Entra um instantinho, por favor. Ele não vai me perdoar quando souber que você veio até aqui.

Uma da manhã — não era hora de visitar o irmão de ninguém. Eu só pensava na turma lá no bar, uísque à minha espera. Um instantinho — não tinha como recusar.

Quem se recusou foi o chofer, não podia esperar — então cometi a suprema asneira de pagar o táxi, deixando que ele se fosse.

O irmão era um galalau de seus 18 anos, que me encheu de perguntas e que era mesmo de encher. Desvencilhei-me dele como pude e me despedi, sem atender à sugestão da moça, que insistia:

— Fica mais um pouco, que depois eu chamo um táxi para você.

— Não é preciso, vou andando, pego um na esquina.

E me arranquei dali.

Para começar, não havia esquina: a rua se prolongava, tortuosa, levando a lugar nenhum. As casas fechadas e às escuras. E nem sombra de táxi. Andei alguns quilômetros até encontrar um cruzamento, me meti por outra rua, mais outra, outra ainda, e nada: nem uma janela acesa, um botequim ainda aberto, alguém a quem pedir informação. A essa altura eu estava perdido num labirinto de ruas, não saberia voltar à casa da moça para que ela me pedisse um táxi. Eu podia estar tanto em São Paulo como em Jacarta, na Indonésia. Uma hora, duas horas à procura de uma avenida, uma praça com algum movimento, ao menos um ser vivo a quem pudesse pedir ajuda. Então começou a chover.

Aquela chuva paulista — fria e chata, fina e densa, que vai molhando aos poucos, como se não fosse nada. E eu já estava encharcado, sem ter uma garagem, uma marquise, uma árvore que me abrigasse. Só me restava continuar andando a esmo por aquelas ruas malditas de um bairro perdido numa cidade de pesadelo. A lembrança dos meus amigos lá no bar, o uísque à minha espera, me parecia distante como uma alegria da infância. Só me faltava invocar a proteção de minha mãezinha para me livrar daquele tormento. Esgueirando-me junto às paredes como um cão sem dono, trêmulo de raiva e de frio, as pernas trôpegas, eu prosseguia sem destino noite adentro, sem esperança de um dia retornar à civilização. Mais de uma vez, em desespero, pensei em bater freneticamente numa porta qualquer, acordar um cristão que me socorresse. Três, quatro, cinco horas da manhã, e eu andando. Nenhum movimento ao redor, tudo parado e morto.

O dia começou a clarear, quando enfim cheguei como um autômato a uma rua mais larga, cruzada de vez em quando pelos faróis de um carro. Em vão acenei para um ou outro, mas não tomavam conhecimento de minha existência, como se eu fosse invisível. Encostei-me a uma parede e entreguei a Deus a minha sorte. Olhos fechados, morto de sono e cansaço, eu só pensava na minha cama do hotel.

Seis horas da manhã, dia claro. Abro os olhos e vejo à minha frente, como num milagre, parado junto ao meio-fio, um táxi, o chofer acenando:

— Para o centro?

Dormi durante todo o percurso, quando dei por mim havíamos chegado. Só saí da cama às duas da tarde. E quando me juntei aos amigos no restaurante, eles não me perdoaram:

— Muito vivo, hein? Nos trocou por coisa melhor para passar a noite.

fernando-sabino