15 ago 2019
Humberto Werneck
Uns mais, outros menos, não há cronista que não deixe vazar em prosa um tanto, ou muito, de seu baú familiar, presente ou passado. O que, aliás, está na natureza de um gênero cujos momentos mais felizes nos dão a impressão de estarmos sentados ao lado de alguém que parece falar a cada leitor em particular.
Basta ver, numa fartura de exemplos, a “Receita de domingo” que a sensibilidade de Paulo Mendes Campos com certeza copiou do imaginário caderno de seu convívio com a mulher e os filhos. Aonde mais teria ele ido catar, num começo de manhã, certa “dissonância festiva de instrumentos e percussão – caçarolas, panelas, frigideiras, cristais – anunciando que a química e a ternura do almoço mais farto e saboroso não...31 jul 2019
Humberto Werneck
Falar em obsessão seria um exagero, mas não dá para negar que Otto Lara Resende tinha algo de especial com o mês de agosto. Fosse o que fosse, o fato é que fez dele tema de um punhado de crônicas na Folha de S.Paulo – para não falar nos artigos que assinou no jornal O Globo, peças finas nas quais o mês em questão já está no título, como “Punhais de agosto”, ou “13 de agosto: tudo bem”. Quando, em 1992, lhe pedi algo para a revista Elle, o que foi que o Otto desovou? “Agosto, apenas uma rima para desgosto?”, delícia de crônica que, 27 anos depois, acaba de vazar da hemeroteca para enriquecer nosso Portal.
Para ficar apenas nos escritos de Otto reunidos no livro póstumo “Bom dia para nascer”,...15 jul 2019
Humberto Werneck
“Uma amizade”, escreveu Drummond, “pode ser considerada perfeita se resiste ao fato de ambos os amigos serem escritores do mesmo gênero – e bons.” A dele mesmo com João Cabral, outro imenso poeta, não resistiu; sem ruptura explícita entre o antigo mestre e o ex-discípulo, mas com enviesada e, não raro, divertida troca de farpas.
Drummond talvez tivesse razão ao dizer também que “de ordinário, o convívio das letras não cria amigos, mas cúmplices”. Na cena literária, de fato, atulhada de vaidades mendicantes – para incrustar esta pérola de Nelson Rodrigues –, não chegam a fazer maioria os escribas de bom quilate que sejam também nobres o bastante para reconhecer os méritos e acarinhar confrades de estatura comparável....28 jun 2019
Humberto Werneck
Já marmanjo, na casa dos 30, Paulo Mendes Campos caiu em cima de um tesouro que o acaso devolvera a suas mãos: seu diário de garoto, escrito em 1935, ao tempo em que, aluno da 2ª série do ginasial, ele vivia os rigores de um colégio interno – o temível Dom Bosco, dos padres salesianos, em Cachoeira do Campo, Minas Gerais. Era um pouco por castigo que ali estava, desde o ano anterior, por ter sido reprovado na 1ª série. Na áspera solidão do internato, lhe parecia estar – dirá ele na crônica “Quando voltei ao colégio” – o absurdo de expiar “crime futuro”.
O diário recuperado rendeu outra crônica, sem título, publicada em 1954 na coluna de PMC no Diário Carioca. Ao incluí-la em livro, bem mais tarde,...17 jun 2019
Humberto Werneck
Dos 77 anos que viveu, Rubem Braga passou uma boa terça parte, a derradeira, de frente para o mar, na legendária cobertura de Ipanema onde se encastelou em meados da década de 1960. Nem assim fartou-se ele da maravilha a que fora apresentado na infância, no inesquecível dia em que, num bando de meninos, deixou sua cidade, Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, para conhecer o mar.
“Era qualquer coisa de largo, de inesperado”, registrará nosso maior cronista, três décadas mais tarde, em “Visão do mar”. “Ficamos parados”, descreveu, “respirando depressa, perante as grandes ondas que arrebentavam.” Lembrança tão forte quanto fecunda: até a morte, em 1990, o Braga volta e meia ambientaria crônicas – “Duas...31 mai 2019
Humberto Werneck
“Onde andará agora aquele grandessíssimo...”, rosna a personagem feminina de “A moça e o Gaballum”, de Antônio Maria – e nem carece concluir a frase, pois o cronista intervém: “O homem ausente é chamado pela mesma palavra, desde que Adão saía, para buscar a maçã do regime de Eva.”
Pois bem, é esse o estado de espírito de uma criatura que, em “O pombo enigmático”, de Paulo Mendes Campos, aguarda o amado, com quem marcou encontro num beiral de igreja e que, já passada a hora, ainda não deu as caras, ou melhor, as asas. Finalmente chega ele, com um sorriso que desarma o pito à sua espera: numa “tarde tão bonita”, explica o pombinho à sua amada, “era um crime voar”, e por isso “vim andando”...
Nada...15 mai 2019
Humberto Werneck
Moça pobre de subúrbio carioca, a Thereza fez um pedido original à redação da Claudia, que naquele tempo – 1964 – se dispunha a realizar sonhos das leitoras: ao se casar, queria ter como padrinho seu cronista predileto, Paulo Mendes Campos, e que ele, ao pé do bolo, dissesse umas palavras. Pois bem, a noiva teve muito mais do que pediu: em vez de discurso, o padrinho leu na festa uma "Crônica para Thereza", em seguida publicada na revista, da qual era colaborador.
Fique desde já a recomendação (quase escrevo intimação): além dessa delicada crônica, vale conhecer toda a história que há por detrás dela. Resgatada em 2014 nas páginas do jornal O Estado de S. Paulo, pôde então o IMS entrevistar Thereza,...15 abr 2019
Humberto Werneck
Paulo Mendes Campos tinha pelo Botafogo uma fidelidade acima de qualquer suspeita. Houve um dia, porém, em que ele traiu o objeto de sua paixão futebolística – e logo com que outro, o Flamengo! Mas não vale julgar por aquele episódio – solitário como a estrela que adorna o escudo de seu time – a solidez de seu amor ao clube da rua General Severiano. Na história, “Salvo pelo Flamengo”, passada num lobby de hotel em Estocolmo, em 1956, a traição se justifica como legítima defesa. Não venha alguém dizer que não faria o mesmo, se à sua frente se plantasse, embriagado, ameaçador, um sueco dos grandes.No mais, o cronista mineiro – ele próprio um craque também entre as quatro linhas – sempre foi irrepreensivelmente fiel...29 mar 2019
Humberto Werneck
Em sua deslumbrante cobertura em Ipanema, o Sabiá da Crônica – apelido que o amigo Sérgio Porto pespegou em Rubem Braga – teve em gaiola várias espécies de pássaros, mas nenhum sabiá. Em meados dos anos 60, sua fauna avícola doméstica consistia num coleirinha, um curió e um melro (macho, e ainda assim batizado Brigitte, pelo tanto que se desgrenhava ao tomar banho). Braga tratava amorosamente as aves, residentes ou de passagem pela cobertura, onde havia horta e pomar, carinho que elas retribuíam com cantoria, e mais, com inspiração para crônicas. Numa delas, “Negócio de menino”, o Sabiá resiste às cantadas de um garoto de 10 anos disposto a tudo para que ele lhe venda o melro, o coleirinha ou o curió.
Numa crônica...15 mar 2019
Humberto Werneck
Houve um tempo em que a velhice parecia vir mais cedo. Mal saídos da juventude, homens e mulheres (eles, em especial) se rendiam, quase sempre sem muita resistência, a costumes – em mais de um sentido da palavra – severos e engravatados. De “moço” e “moça”, passavam, bruscamente, a irremediáveis “senhor” e “senhora”. Desse processo, ninguém escapava. Mas Rubem Braga, convenhamos, exagerava, ao assumir-se como “o velho Braga” antes que lhe viesse o primeiro fio de cabelo branco. Fazia parte, quem sabe, de seu charme. “Ultimamente têm passado muitos anos”, constatou ele aos 32, em “A companhia dos amigos”, crônica de que se vai falar aqui em outra ocasião, mas que, deliciosa, recomenda-se (re)ler o quanto...28 fev 2019
Humberto Werneck
Não há quem não guarde alguma lembrança de Carnaval, tenha ele se passado na alucinação de Momo, enredado em serpentina e salpicado de confete, ou no silêncio espesso de um retiro espiritual (que, aliás, não deixa de ser uma forma negativa de sublinhar três dias de paganismo à solta.)Rubem Braga, por exemplo, numa de suas crônicas sob o título “De São Paulo”, haverá de se lembrar, em fevereiro de 1951, de um vivido na capital paulista, “chocho carnaval de sempre”, para cuja pasmaceira lhe parecia existir o solitário consolo de umas “noites frescas”. O que diria hoje o velho Braga ante das folganças momescas de uma Pauliceia a cada ano mais desvairada?Já Paulo Mendes Campos conservou, qual cicatriz na alma, o trauma...15 fev 2019
Humberto Werneck
Corro os olhos pelos nomes que compõem este Portal da Crônica Brasileira, e constato: nenhum carioca (por enquanto...) nesse time.Confira: Clarice Lispector nasceu na Ucrânia e adolesceu no Recife, de onde veio também Antônio Maria; Rachel de Queiroz é cearense, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, mineiros, e Rubem Braga, capixaba. Alargo a vista e me dou conta de que, na privilegiada geração a que pertencem, a chamada geração de ouro da crônica brasileira, vicejante sobretudo nas décadas de 1950 e 60, bem poucos são nativos do Rio de Janeiro. Vinicius de Moraes, Cecília Meireles, Carlos Heitor Cony, quem mais? Dos graúdos, desconfio que é só. De Minas vieram Carlos Drummond de Andrade e Fernando Sabino; de Pernambuco,...31 jan 2019
Humberto Werneck
Não me leve a mal, me leve a bem, se insisto numa recomendação deixada aqui na última conversa, para que se leia “Entreato chuvoso”, crônica de Otto Lara Resende sobre o verão. Não aquele, escaldante, que convoca à praia, mas o verão em que, subitamente, o mundo ameaça acabar, como tantas vezes acontece entre novembro e março. A tempestade, então, descreve Otto, “desfolha a rosa dos ventos”, enquanto “o sol se retira, agastado, para não ver esse rude espetáculo”. O cronista saca guarda-chuva e citação: “Chove chuva choverando” – e indaga: “Quem escreveu essa bobagem?” (Delicado, provavelmente não quis dar nome aos bois, no caso ao poeta Oswald de Andrade, de quem foi amigo, nos versos de “Soidão”,...15 jan 2019
Humberto Werneck
“Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade”, escreveu Machado de Assis, com ironia muito sua, e deu a receita: bastava dizer “Que calor! Que desenfreado calor!”, exclamações a serem proferidas “agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca.”Século e tanto depois – a crônica é de novembro de 1877 –, estamos livres da sobrecasaca, pesada e abafada vestimenta, carapaça, quase, dentro da qual o jovem (38 anos) colaborador da revista Ilustração Brasileira se sentia assar na fornalha do Rio de Janeiro. Nem por isso, sabemos, o refresco foi total. Encaradas agora em mangas de camisa, ou sem camisa alguma, as demasias térmicas do verão carioca seguiriam...13 dez 2018
Humberto Werneck
Uns mais, outros menos, cada um dos 12 meses nos reserva agendas – nenhuma delas mais imperiosa que a de dezembro. A contragosto ou de coração, quase não há quem não embarque ou se deixe levar pelo turbilhão inescapável de encontros, confraternizações, reconciliações, compras, festas, excessos de copo & garfo, tudo isso temperado por balanços de vida e formulação de planos para o ano que virá no tobogã do réveillon.Vividos ou enunciados, haverá excesso, também, de clichês e frases feitas sazonais. Se não há como fugir, por que não assumir, como se fosse livre escolha, o vagalhão de lugares-comuns que o calendário dezembrino nos impõe, sejam eles concretos como o pinheirinho pejado de bolas, sejam imateriais como os...30 nov 2018
Humberto Werneck
Sabem os cronistas a que extremos pode levá-los a obrigação de encher um palmo de jornal ou revista e não ter assunto para rechear o espaço. Este é todo um longo e divertido capítulo do ofício. Divertido, é claro, apenas para o leitor, que nem sempre poderia imaginar o pesadelo que foi para Paulo Mendes Campos, por exemplo, alinhavar a deliciosa “Vaidades e uma explicação”, ou, para Antônio Maria, pôr de pé sua impecável “Amanhecer no Margarida’s”.Fernando Sabino lembrou com muita graça o dia em que o colega Rubem Braga, à míngua de assunto, lhe perguntou se tinha alguma crônica usada que pudesse lhe ceder. Organizadíssimo, o escritor mineiro baixou a seus arquivos e de lá trouxe a história de uma sopa servida...13 nov 2018
Humberto Werneck
Até onde a vista alcança, Rachel de Queiroz não era dada a patriotismos, menos ainda a patrioteiras, fosse na ficção, fosse na crônica. Difícil imaginar esta cearense de linguagem desenfeitada alçando voos condoreiros como aqueles do baiano Castro Alves para reverenciar o “auriverde pendão da minha terra”. Estridências cívicas de sua parte, nem mesmo nos anos da juventude, quando, por breve e intenso tempo, esteve embarcada na militância comunista, engajamento que lhe custou encrencas com a polícia. Tampouco já cinquentenária, quando, instalada no outro lado do espectro ideológico, andou metida em conspirações que levariam ao golpe de 1964, do qual sairia presidente da República seu parente, amigo e coestaduano Humberto...30 out 2018
Humberto Werneck
Aqueles quatro moços mineiros que Mário de Andrade chamou de “vintanistas” – Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino – encontraram Carlos Drummond de Andrade pela primeira vez num inesquecível dia no início dos anos 1940, em Belo Horizonte, e com ele seguiram encontrados pela vida inteira. Mas qual dos quatro esteve mais próximo do poeta?Paulo, mais fechado, certamente não. Muito menos Hélio, homem exuberante, mas, naquele caso excepcionalíssimo, travado pela admiração e respeito. Talvez Fernando, e não só por ter sido vizinho do poeta – morava na rua Caning, a pequena distância da Conselheiro Lafaiete, naquele território em que Copacabana e Ipanema parecem confundir-se. Os dois tinham...15 out 2018
Humberto Werneck
São minoria os cronistas que não cuidam, cedo ou tarde, de peneirar em livro aquilo que escreveram para o varejo da imprensa. Entre os graúdos, um dos inapetentes foi Antônio Maria; se bem que o jornalista e compositor pernambucano, levado por um infarto aos 43 anos, pode não ter tido tempo para pensar na consolidação de seus escritos. Outro que se foi sem coletânea de crônicas, aos 70 anos, é Otto Lara Resende, cuja produção no gênero concentrou-se no final da vida – pouco mais de ano e meio em que, cronicando em ritmo diário, pingou quase 600 colunas na Folha de S.Paulo. E também Clarice Lispector, que não apenas se foi cedo demais, aos 57, como tinha com a crônica uma relação sofrida. No seu caso, assim como...