29 nov 2019
Humberto Werneck
Nascido em 1905, o cronista e romancista Jurandir Ferreira chegou ao fim da vida, quase um século depois, sem jamais vestir o figurino do velho ranzinza. Ao contrário, era conhecido também por sua bonomia. Mas nem por isso deu trégua a quem lhe parecesse ameaçar o sossego e as belezas naturais de sua cidade, a graciosa Poços de Caldas, no sul de Minas Gerais.
Nos anos 1950, por exemplo, quando palavras como ecologia e ambientalismo ainda não tinham uso corrente, Jurandir Ferreira se insurgiu, em “Cabritos na horta”, contra o que qualificou como “furibundo projeto” – a construção de uma estrada rumo ao cume da Serra de São Domingos, que domina a paisagem de Poços. “Penso na inocência colossal e indefesa da montanha,...14 nov 2019
Humberto Werneck
Território natural da graça e da leveza, nem por isso a crônica está fechada a temas áridos, ásperos, quando não espinhentos, como a política. Não é frequente, mas acontece – e, quando se trata de cronista dos bons, o fruto pode ser até apetitoso.
Do nosso time, quem mais escreveu sobre política foi Otto Lara Resende, não tivesse sido ele o que mais se aplicou ao jornalismo. Repórter, fez com o general Lott, em novembro de 1955, uma entrevista que se tornaria famosa, horas depois de o entrevistado haver dado um “contragolpe preventivo” para garantir a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek. Duas crônicas – “A restrição mental” e “O direito no sufoco” – deixam claro que Otto, naquele episódio, foi...31 out 2019
Humberto Werneck
Talvez não haja cronista brasileiro, de grande ou modesto quilate, que não tenha um dia escrito sobre a morte – tema, há quem ache, incompatível com a leveza do gênero. E nem todos que escreveram o fizeram por imposição do calendário, apenas porque fosse, como agora, tempo de Finados. Crônicas tocantes como “Vida” e “Enterro de anjo”, por exemplo, de Rachel de Queiroz, não dependeram de ser 2 de novembro para descerem ao papel e, em qualquer outra data, ao coração do leitor.
Alguns de nossos craques, como Paulo Mendes Campos, escreveram com frequência sobre o tema, e nem sempre com a circunspecção de que ele em geral se reveste. Se “Primeiro exercício para a morte”, “Encenação da morte” e “Tens em mim tua...14 out 2019
Humberto Werneck
Numa das notas que compõem a pequena crônica “O rapaz entrou no bar”, de 1951, Paulo Mendes Campos conta a história de duas vizinhas que, tendo saído no tapa, acabaram na delegacia. Ao saber que uma delas era professora, o delegado, lembrando-se de alguma que tivera, viu chegada a hora de livrar-se de mágoas escolares encravadas na alma havia mais de 30 anos – e não teve dúvida: mandou a criatura escrever 500 vezes, e com “caligrafia muita boa”, a frase “Não devo brigar com a minha vizinha!”.
Não é descabido imaginar que também o cronista, ao relatar aquele ato de vingança, tenha lavado um pouco a própria alma, não tivesse ele acumulado mágoas nos anos em que foi aluno do Colégio Dom Bosco, de Cachoeira do Campo,...30 set 2019
Humberto Werneck
A nostalgia não é mais o que ela era, escreveu o americano Peter De Vries no romance The tents of wickedness, de 1959, pondo em circulação uma pérola que a atriz francesa Simone Signoret, 20 anos depois, vai incrustar como título em seu livro de memórias.
Sobrecarregado de saudosismo, o achado resiste, com jeito de coisa sem dono, capaz de resumir o sentimento que se apossa de tantos de nós quando a memória regurgita lembranças da infância. E nem é preciso que se esteja, como agora, em clima de Dia da Criança, festejado a 12 de outubro.
Uns mais, outros menos, todos os nove autores de nosso Portal destilaram recordações de meninice em suas crônicas.
O mais antigo deles, Jurandir Ferreira, nos leva, em “A viagem”,...16 set 2019
Humberto Werneck
Já apelidado o Sabiá da Crônica (um achado de Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta), não seria excessivo, e muito menos descabido, chamar Rubem Braga também de O Fiscal da Primavera. Credenciais por certo não lhe faltam, espalhadas numa obra tão rica quanto vasta, iniciada aos 19 anos no Diário da Tarde, de Belo Horizonte, em 1932, e só encerrada com a morte, em dezembro de 1990.
Pense, por exemplo, na crônica “Manhã”, publicada em maio de 1952, e que, quase sete décadas depois, ainda não está em livro, como bem mereceria.
Não estranhe que um dos assuntos do cronista seja ali a primavera, quando maio, neste canto do mundo, é outono – ou deveria ser, mas sabemos como andam bagunçadas as fronteiras entre as... 2 set 2019
Humberto Werneck
Ninguém vai pedir a você que esqueça os outros craques deste Portal, claro que não – mas vamos, desta vez, estender um tapetinho vermelho exclusivo, só para Fernando Sabino, um dos maiores nomes da chamada fase de ouro da crônica brasileira, a partir de agora incorporado ao nosso time.
Com ele, mestre sobretudo na arte da prosa bem-humorada, chega um punhado de histórias deliciosas.
A começar por “O homem nu”, provavelmente a crônica mais conhecida de Sabino, não apenas lida e relida há mais de meio século, sem uma ruga sequer, como também levada ao cinema, com Paulo José no papel-título. E, já que temos um homem despido, cuidemos de providenciar para ele uma parceira, embora em situação oposta, “A mulher vestida”....15 ago 2019
Humberto Werneck
Uns mais, outros menos, não há cronista que não deixe vazar em prosa um tanto, ou muito, de seu baú familiar, presente ou passado. O que, aliás, está na natureza de um gênero cujos momentos mais felizes nos dão a impressão de estarmos sentados ao lado de alguém que parece falar a cada leitor em particular.
Basta ver, numa fartura de exemplos, a “Receita de domingo” que a sensibilidade de Paulo Mendes Campos com certeza copiou do imaginário caderno de seu convívio com a mulher e os filhos. Aonde mais teria ele ido catar, num começo de manhã, certa “dissonância festiva de instrumentos e percussão – caçarolas, panelas, frigideiras, cristais – anunciando que a química e a ternura do almoço mais farto e saboroso não...31 jul 2019
Humberto Werneck
Falar em obsessão seria um exagero, mas não dá para negar que Otto Lara Resende tinha algo de especial com o mês de agosto. Fosse o que fosse, o fato é que fez dele tema de um punhado de crônicas na Folha de S.Paulo – para não falar nos artigos que assinou no jornal O Globo, peças finas nas quais o mês em questão já está no título, como “Punhais de agosto”, ou “13 de agosto: tudo bem”. Quando, em 1992, lhe pedi algo para a revista Elle, o que foi que o Otto desovou? “Agosto, apenas uma rima para desgosto?”, delícia de crônica que, 27 anos depois, acaba de vazar da hemeroteca para enriquecer nosso Portal.
Para ficar apenas nos escritos de Otto reunidos no livro póstumo “Bom dia para nascer”,...15 jul 2019
Humberto Werneck
“Uma amizade”, escreveu Drummond, “pode ser considerada perfeita se resiste ao fato de ambos os amigos serem escritores do mesmo gênero – e bons.” A dele mesmo com João Cabral, outro imenso poeta, não resistiu; sem ruptura explícita entre o antigo mestre e o ex-discípulo, mas com enviesada e, não raro, divertida troca de farpas.
Drummond talvez tivesse razão ao dizer também que “de ordinário, o convívio das letras não cria amigos, mas cúmplices”. Na cena literária, de fato, atulhada de vaidades mendicantes – para incrustar esta pérola de Nelson Rodrigues –, não chegam a fazer maioria os escribas de bom quilate que sejam também nobres o bastante para reconhecer os méritos e acarinhar confrades de estatura comparável....28 jun 2019
Humberto Werneck
Já marmanjo, na casa dos 30, Paulo Mendes Campos caiu em cima de um tesouro que o acaso devolvera a suas mãos: seu diário de garoto, escrito em 1935, ao tempo em que, aluno da 2ª série do ginasial, ele vivia os rigores de um colégio interno – o temível Dom Bosco, dos padres salesianos, em Cachoeira do Campo, Minas Gerais. Era um pouco por castigo que ali estava, desde o ano anterior, por ter sido reprovado na 1ª série. Na áspera solidão do internato, lhe parecia estar – dirá ele na crônica “Quando voltei ao colégio” – o absurdo de expiar “crime futuro”.
O diário recuperado rendeu outra crônica, sem título, publicada em 1954 na coluna de PMC no Diário Carioca. Ao incluí-la em livro, bem mais tarde,...17 jun 2019
Humberto Werneck
Dos 77 anos que viveu, Rubem Braga passou uma boa terça parte, a derradeira, de frente para o mar, na legendária cobertura de Ipanema onde se encastelou em meados da década de 1960. Nem assim fartou-se ele da maravilha a que fora apresentado na infância, no inesquecível dia em que, num bando de meninos, deixou sua cidade, Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, para conhecer o mar.
“Era qualquer coisa de largo, de inesperado”, registrará nosso maior cronista, três décadas mais tarde, em “Visão do mar”. “Ficamos parados”, descreveu, “respirando depressa, perante as grandes ondas que arrebentavam.” Lembrança tão forte quanto fecunda: até a morte, em 1990, o Braga volta e meia ambientaria crônicas – “Duas...31 mai 2019
Humberto Werneck
“Onde andará agora aquele grandessíssimo...”, rosna a personagem feminina de “A moça e o Gaballum”, de Antônio Maria – e nem carece concluir a frase, pois o cronista intervém: “O homem ausente é chamado pela mesma palavra, desde que Adão saía, para buscar a maçã do regime de Eva.”
Pois bem, é esse o estado de espírito de uma criatura que, em “O pombo enigmático”, de Paulo Mendes Campos, aguarda o amado, com quem marcou encontro num beiral de igreja e que, já passada a hora, ainda não deu as caras, ou melhor, as asas. Finalmente chega ele, com um sorriso que desarma o pito à sua espera: numa “tarde tão bonita”, explica o pombinho à sua amada, “era um crime voar”, e por isso “vim andando”...
Nada...15 mai 2019
Humberto Werneck
Moça pobre de subúrbio carioca, a Thereza fez um pedido original à redação da Claudia, que naquele tempo – 1964 – se dispunha a realizar sonhos das leitoras: ao se casar, queria ter como padrinho seu cronista predileto, Paulo Mendes Campos, e que ele, ao pé do bolo, dissesse umas palavras. Pois bem, a noiva teve muito mais do que pediu: em vez de discurso, o padrinho leu na festa uma "Crônica para Thereza", em seguida publicada na revista, da qual era colaborador.
Fique desde já a recomendação (quase escrevo intimação): além dessa delicada crônica, vale conhecer toda a história que há por detrás dela. Resgatada em 2014 nas páginas do jornal O Estado de S. Paulo, pôde então o IMS entrevistar Thereza,...15 abr 2019
Humberto Werneck
Paulo Mendes Campos tinha pelo Botafogo uma fidelidade acima de qualquer suspeita. Houve um dia, porém, em que ele traiu o objeto de sua paixão futebolística – e logo com que outro, o Flamengo! Mas não vale julgar por aquele episódio – solitário como a estrela que adorna o escudo de seu time – a solidez de seu amor ao clube da rua General Severiano. Na história, “Salvo pelo Flamengo”, passada num lobby de hotel em Estocolmo, em 1956, a traição se justifica como legítima defesa. Não venha alguém dizer que não faria o mesmo, se à sua frente se plantasse, embriagado, ameaçador, um sueco dos grandes.No mais, o cronista mineiro – ele próprio um craque também entre as quatro linhas – sempre foi irrepreensivelmente fiel...29 mar 2019
Humberto Werneck
Em sua deslumbrante cobertura em Ipanema, o Sabiá da Crônica – apelido que o amigo Sérgio Porto pespegou em Rubem Braga – teve em gaiola várias espécies de pássaros, mas nenhum sabiá. Em meados dos anos 60, sua fauna avícola doméstica consistia num coleirinha, um curió e um melro (macho, e ainda assim batizado Brigitte, pelo tanto que se desgrenhava ao tomar banho). Braga tratava amorosamente as aves, residentes ou de passagem pela cobertura, onde havia horta e pomar, carinho que elas retribuíam com cantoria, e mais, com inspiração para crônicas. Numa delas, “Negócio de menino”, o Sabiá resiste às cantadas de um garoto de 10 anos disposto a tudo para que ele lhe venda o melro, o coleirinha ou o curió.
Numa crônica...15 mar 2019
Humberto Werneck
Houve um tempo em que a velhice parecia vir mais cedo. Mal saídos da juventude, homens e mulheres (eles, em especial) se rendiam, quase sempre sem muita resistência, a costumes – em mais de um sentido da palavra – severos e engravatados. De “moço” e “moça”, passavam, bruscamente, a irremediáveis “senhor” e “senhora”. Desse processo, ninguém escapava. Mas Rubem Braga, convenhamos, exagerava, ao assumir-se como “o velho Braga” antes que lhe viesse o primeiro fio de cabelo branco. Fazia parte, quem sabe, de seu charme. “Ultimamente têm passado muitos anos”, constatou ele aos 32, em “A companhia dos amigos”, crônica de que se vai falar aqui em outra ocasião, mas que, deliciosa, recomenda-se (re)ler o quanto...28 fev 2019
Humberto Werneck
Não há quem não guarde alguma lembrança de Carnaval, tenha ele se passado na alucinação de Momo, enredado em serpentina e salpicado de confete, ou no silêncio espesso de um retiro espiritual (que, aliás, não deixa de ser uma forma negativa de sublinhar três dias de paganismo à solta.)Rubem Braga, por exemplo, numa de suas crônicas sob o título “De São Paulo”, haverá de se lembrar, em fevereiro de 1951, de um vivido na capital paulista, “chocho carnaval de sempre”, para cuja pasmaceira lhe parecia existir o solitário consolo de umas “noites frescas”. O que diria hoje o velho Braga ante das folganças momescas de uma Pauliceia a cada ano mais desvairada?Já Paulo Mendes Campos conservou, qual cicatriz na alma, o trauma...15 fev 2019
Humberto Werneck
Corro os olhos pelos nomes que compõem este Portal da Crônica Brasileira, e constato: nenhum carioca (por enquanto...) nesse time.Confira: Clarice Lispector nasceu na Ucrânia e adolesceu no Recife, de onde veio também Antônio Maria; Rachel de Queiroz é cearense, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, mineiros, e Rubem Braga, capixaba. Alargo a vista e me dou conta de que, na privilegiada geração a que pertencem, a chamada geração de ouro da crônica brasileira, vicejante sobretudo nas décadas de 1950 e 60, bem poucos são nativos do Rio de Janeiro. Vinicius de Moraes, Cecília Meireles, Carlos Heitor Cony, quem mais? Dos graúdos, desconfio que é só. De Minas vieram Carlos Drummond de Andrade e Fernando Sabino; de Pernambuco,...31 jan 2019
Humberto Werneck
Não me leve a mal, me leve a bem, se insisto numa recomendação deixada aqui na última conversa, para que se leia “Entreato chuvoso”, crônica de Otto Lara Resende sobre o verão. Não aquele, escaldante, que convoca à praia, mas o verão em que, subitamente, o mundo ameaça acabar, como tantas vezes acontece entre novembro e março. A tempestade, então, descreve Otto, “desfolha a rosa dos ventos”, enquanto “o sol se retira, agastado, para não ver esse rude espetáculo”. O cronista saca guarda-chuva e citação: “Chove chuva choverando” – e indaga: “Quem escreveu essa bobagem?” (Delicado, provavelmente não quis dar nome aos bois, no caso ao poeta Oswald de Andrade, de quem foi amigo, nos versos de “Soidão”,...