Para o ano que chega

Nuvem da manhã, Paraná-PR, 1952. Foto de Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Os pais pediram que o menino fosse dormir cedo, para que pudesse “acordar à hora da passagem do ano”. A julgar pela “insistência da recomendação”, o ano não passaria se o menino não se deitasse. O que seria, francamente, um problemão – e para o mundo todo. Se o ano não virasse, “tudo o que estava para acontecer a partir da meia-noite, bruscamente ficaria retido nas malas, nos pacotes, na escuridão”. Por respeito à humanidade, o garoto acatou. Quer dizer, mais ou menos – ficaria na cama de olhos fechados, igual quando brincava de morto, mas dormir mesmo não dormiria. Só estando acordado seria possível “devassar de vez o mistério da passagem do ano”.

Os adultos mentem muito, sabia. Até mesmo sua mãe, “que lhe pede não mentir nunca”, inventava histórias quando ele perguntava “como era a cara do ano velho e do ano novo”. Sempre lhe respondiam, com sorrisos enigmáticos “que não esclarecem nada”, que tudo dependia da sua Maneira de olhar. Mas olhar o quê? O ano velho indo embora tal qual um balão, “subindo, perdendo gás, perdendo gás, até acabar muito chocho”? Ou a chegada do novo, que descia de paraquedas na praça General Osório, trazendo uma mochila munida de “talco, escova de dentes e pombas”, para soltar em sinal de paz e alegria? Pouca coisa fazia sentido naquela cabeça de menino.

Confinado em seu quarto, correu para a janela depois do beijo materno de boa-noite e ali ficou, vigia do réveillon. Era preciso guardar o céu, pois com certeza “o ano passa no ar”. Mas o que faria, então, “tanta gente na rua, tanto carro buzinando”, sem ninguém olhando para cima? Já estavam, decerto, acostumados. “É ruim, ficar acostumado: não se vê mais nada, as coisas vão se apagando”, concluiu a criança da crônica de Drummond. Ninguém ia perceber a passagem do ano.

Desiludido, o menino pegou no sono e “acordou no chão, apavorado com o estrondo” da virada. Foi correndo para a sala, onde os adultos, falando um pouco arrastado, “tinham perdido o jeito comum, o jeito diurno”. “Ele passou?”, quis saber. Carinhosa, “a mãe levou-o de volta para o quarto”, encostou o rosto em seu rosto e “rogou-lhe que dormisse outra vez”. O ano passara sem que ele o visse. Bem que sua mãe tinha alertado: só dependia da maneira de olhar... e “ele não acertara com a maneira”.

“Acho que foi Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez”, escreveu Otto Lara Resende. Pela última ou pela primeira? “Pela primeira foi outro escritor quem disse”, parece. Não importa. O que importa é que esse “olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua”, tem algo de deprimente. Não espanta que Hemingway tenha acabado como acabou, fugindo “enquanto pôde do desespero que o roía – e daquele tiro brutal”, aliás.

“Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver”, disse Otto, citando o poeta, seu colega de Portal. Porque “um poeta é só isto: um certo modo de ver”. Acontece que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar – e acaba que “vê não-vendo”. Experimente “ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver”. Parece fácil, mas não é. “O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade” em nossas retinas fatigadas. A rotina impõe como que “um vazio” ao campo visual acostumado e, de tanto ver, não vemos. Ficamos com a Vista cansada.

Cruzando todo dia a mesma porta, “se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho” é bem capaz que não saiba dizer. Que nem aquele sujeito “que passou 32 anos pelo mesmo hall do prédio do seu escritório”, cumprimentando o mesmíssimo porteiro e nunca, no entanto, sequer soube como ele era – “sua cara”, “sua voz”, “como se vestia”. Em mais de três décadas, nunca o viu. Só quando o porteiro “cometeu a descortesia de falecer” é que foi notado. Se algum dia em seu posto “estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser que também ninguém desse por sua ausência”.

O poeta, assim como a criança que tentou testemunhar a passagem do ano, é capaz “de ver pela primeira vez o que, de tão visto, ninguém vê”, e assim espantar “o monstro da indiferença” que periga se entocar em nossos corações. Para o ano que chega, que toda a gente possa aprender um pouco a ter “olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo”, pois há sempre muito, muito o que ver por aí.