Imagens da infância
Recomendaram-lhe que se deitasse cedo, para acordar à hora da passagem do ano. A julgar pela insistência da recomendação, o ano não passaria se os garotos ficassem de vigília. E como havia de ser, se não passasse? Era a vida do mundo inteiro que se perturbava. Tudo que estava para acontecer a partir de meia-noite, bruscamente ficaria retido nas malas, nos pacotes, na escuridão. Seria complicar tanto a sorte dos outros, e a sua própria, que o menino se decidiu a acatar aquela ordem ingrata. Ou a fingir acatamento. Iria deitar-se, que remédio? Fecharia os olhos, pois este é o testemunho de sono que as mães procuram no rosto dos filhos. Mas dormir, de verdade, isso não faria. Imóvel, como nas ocasiões em que brincava de morto, continuaria atento ao que ocorresse pela noite a fora, pelo mundo solto. Queria devassar de vez o mistério da passagem do ano, que ninguém sabe explicar. A má mentira lhe falando numa barra de luz que cortava o céu de lado a lado, verdadeiro arco-íris, tão intenso que ninguém podia botar-lhe os olhos em cima; coruscava, ouvia-se um coro de anjos, e tudo sumia de repente: o ano velho se fora, chegara o ano novo. Mas seu tio, que era piloto da Varig e no mês passado (foi há tanto tempo) voara na noite de 31 de dezembro, não confirmou a luz e os anjos: o ano novo desce de paraquedas bem no meio da praça General Osório; traz na mochila talco, escova de dentes e pombas. “Pra quê pombas”? “Pra soltar em sinal de alegria”. Quanto ao ano velho, vira balão e vai subindo, perdendo gás, perdendo gás, até acabar muito chocho. Como as pessoas são mentirosas. Gente nenhuma vira balão, se bem que balão pode virar gente, pelo menos uma vez sonhara que. Sua mãe, que lhe pede não mentir nunca, sua própria mãe não estaria mentindo? Por mais que lhe perguntasse como era a cara do ano velho e a cara do novo, e como era a passagem, não tivera resposta.
Quer dizer, respondera com um sorriso, desses sorrisos que a gente acha uma delícia, mas não esclarecem nada, são formas de esconder: “V. mesmo verá como é. Depende de sua maneira de olhar”. Conversa com outros garotos a respeito, não adianta. Cada um diz mais bobagem que outro, aprendem a mentir com os homens.
Cerrou a porta, determinado. Preparou-se, deitou-se, esperou o beijo suave. Quis ainda puxar conversa, a mãe passou-lhe os dedos na face, repuxando-lhe a pele, num dengue. “Dorme, colaçãozinho de manteiga”. Ela apagou a luz e saiu, veludo andando. Será que aguento ficar acordado até meia-noite? Quanto tempo é meia-noite. Da cama não se vê nada. Tenho de ir para a janela. Claro que o ano passa no ar, fico espiando. Mas há tanta gente na rua, tanto carro buzinando, e ninguém olha para cima. Estão acostumados. É ruim, ficar acostumado: não se vê mais nada, as coisas vão se apagando. Eles conversam demais, seria bom que todo mundo ficasse calado, pensando, sentindo o quê? Sentindo. Como vão perceber que o ano passou, se falam sobre outras coisas, riem, cantam, gritam? Depende tanto da maneira de olhar. Agora estão sambando. As estrelas bem que continuam calmas, calmas. Elas sabem de tudo, veem aquilo que cá de baixo, no meio de tanta confusão, uma criança só pode perceber se ficar de olhos arregalados, quietinha. Por maior que seja a boa vontade... E essa moleza que desce das estrelas e entra sorrateira nos braços, nas pernas; esse peso que faz baixar as pálpebras, como quem desce cortina, devagar.
Acordou no chão, apavorado com o estrondo. Houve um desastre durante a passagem, o mundo acabou? Do salão vinham também gritos em que lhe parecia reconhecer vozes familiares. Seus pais estariam morrendo? Correu à porta, abriu-a, atravessou o corredor e deteve-se à entrada da sala: teve uma imagem conjugada de garrafas, risos, cantos, beijos, copos. Estavam todos salvos, pais e amigos, mas tinham perdido o jeito comum, o jeito diurno. As vozes eram as mesmas e não eram. Arrastavam um pouco, palavras não terminavam, e todas as pessoas manifestavam exagerada ternura umas por outras, abraçando-se copiosamente.
A mãe viu-o de longe: “Filhinho!”, avançou num jeito engraçado, envolveu-no numa carícia, o pai fez o mesmo, os outros bateram palmas. Seus olhos ainda não estavam abertos de todo, sentia vontade de chorar. “Ele passou?” — disse baixinho ao ouvido. Sim, tinha passado, ele não vira? Quis perguntar como é que passara, não teve ânimo. Um pouco tonta, mas docemente, a mãe levou-o de volta para o quarto, agasalhou-o, encostou rosto no rosto — o bafo casava-se ao perfume — rogou-lhe que dormisse outra vez, colaçãozinho de manteiga. O ano passara sem que ele o visse. A mãe prevenira: “Depende da maneira de olhar”. Ele não acertara com a maneira.