Campanha publicitária da Companhia de Incremento de Negócios (CIN) para meias Ibram, 21/09/1961. Foto de Chico Albuquerque/ Acervo Instituto Moreira Salles.
“Às vezes me arrepio toda ao entrar em contato físico com bichos ou com a simples visão deles”, escreveu Clarice Lispector em “Bichos”, a primeira crônica de uma dobradinha filosófica sobre os animais. De seu modo peculiar de entender o mundo, Clarice tinha “certo medo e horror daquele ser vivo que não é humano e que tem os nossos mesmos instintos, embora mais livres e indomáveis”. Porque “um animal jamais substitui uma coisa por outra, jamais sublima como nós somos forçados a fazer”. E, ainda por cima, se move, independentemente, “por força mesmo dessa coisa sem nome que é a Vida”.
Esse horror se traduzia, na verdade, em fascínio, vontade de aprender com as espécies selvagens. Para o espanto de mães e pais de pets, a escritora achava ofensivo quem humanizava os bichos. Preferia animalizar-se ela mesma, aproximando-se da natura deles – o processo não é difícil, “é só não lutar contra, é só entregar-se”.
Quando criança, teve uma gata “rajada de vários tons de cinza”, com aquele agudo “senso felino, desconfiado e agressivo” típico dos gatos – um animal que apesar de saber brincar, nunca ri. A gata vivia parindo e a menina, é claro, queria ficar com os filhotinhos, todos sempre distribuídos em segredo. Em vão, Clarice “reclamava demais a ausência dos gatinhos”. Até que um dia doaram também a sua gata. Desolada, a jovem adoeceu de febre. Como remédio, ganhou um gatinho de pano, o que lhe pareceu ridículo: “como é que aquele objeto morto e mole e ‘coisa’ poderia substituir a elasticidade de uma gata viva?”.
Só mais velha, quando vivia com o marido em Nápoles, na Itália, Clarice pôde superar o trauma. De uma mulher na rua, a escritora comprou um cachorrinho porque sentira que ele nascera para ser seu. A alegria foi recíproca, e o cão, “sem saudade da ex-dona”, "sequer olhou para trás”. Batizado de Dilermando “pelo que nele havia de pernosticamente simpático e de bacharel de Direito do começo do século”, o vira-lata “tinha cara de mulato-malandro brasileiro”, apesar de nascido e criado em Nápoles. Logo os dois criaram uma relação estreita, a ponto de o cão sentir as dificuldades da dona.
“Quando eu estava escrevendo à máquina”, rememorou a cronista, “ele ficava meio deitado ao meu lado, exatamente como a figura da esfinge, dormitando”. E quando ela parava de batucar, às voltas com um bloqueio criativo, Dilermando “imediatamente abria os olhos, levantava alto a cabeça” e ficava olhando “com uma das orelhas em pé”. Assim que retomava a escrita, o bicho reassumia a pose de esfinge, acomodando-se “na sua sonolência povoada de sonhos”.
Dois anos depois, em 1946, Clarice se mudou para a Suíça – onde, disseram, animais não eram admitidos em hotéis. Foi preciso, então, doar Dilermando. A culpa pelo abandono de seu bichinho a assombrou por muito tempo, e chegou a ser abordada no conto “O crime do professor de matemática”, do livro Laços de família.
No mesmo ano, em carta enviada à irmã Tania Kauffman, Clarice escreveu sobre o que aprendeu com seu cachorro: “É de uma paciência para com a natureza impotente dele e para com a natureza incompreensível dos outros… E com os pequenos meios que ele tem, com uma burrice cheia de doçura, ele arranja modo de compreender a gente de um modo direto”. Nenhum ser humano jamais lhe deu a sensação de amor absoluto, sem restrições, quanto aquele vira-lata.
Otto Lara Resende também sofreu com a ausência do seu bicho de estimação. Depois que a família se mudou para uma casa na Gávea, Zano, um gato siamês originalmente batizado de Zeno, como o personagem de Italo Svevo, fugiu. Em “Volte, Zano”, o cronista relata o drama da família, toda reunida com olhos cintilantes: “Devemos ainda ter esperança? Firme, disse eu que sim. Não me conformo”. A neta perguntou a Otto se aquilo era “palpite ou intuição” – e se fosse intuição, que jurasse. “Jurar, não juro. Questão de princípio. Mas quero crer que volte”, respondeu.
Afinal, o gato já sumira e voltara outras duas vezes. Da primeira, misteriosamente atendendo a um chamado carinhoso da menina. Da segunda, também de repente, reapareceu parado como estátua em cima do carro – e apesar dos belos e “magoados olhos azuis” de Zano ameaçarem nova fuga, o bichano acabou entrando naquela casa estranha. Mas “não quis comer, nem beber”, incomodado com o território desconhecido. Era só uma questão de tempo até que ele se acostumasse, garantiu o veterinário.
Na manhã seguinte, porém, nada de Zano. Era inútil gritar ou chamar pelo nome. Só restava procurá-lo pelas ruas. “Inteligentíssimo” e “elegantérrimo”, não podia ter decidido virar hippie aos 11 anos de idade se em casa tinha “afeto, calor humano”, comida, o que quisesse. E, na rua, “uma cachorrada danada”...
Quase duas semanas depois, por conta de vários “telegramas, cartas e telefonemas” de leitores em comiseração, Otto retomou o assunto em “Fuga do borralho”: “Gato e velho não devem mudar de casa, dizia minha mãe. O ideal, aliás, é nascer, viver e morrer na mesma”. Zano, tanto gato quanto velho, não tinha dado sinal de vida. Só em sonho e nas alucinações de Otto. Apegado a relatos de gatos que voltaram depois de 15 dias, de um mês, o dono sustentou as esperanças.
“Enfim, com o sumiço de Zano, só me resta também sumir”, escreveu Otto, anunciando suas breves férias do jornal. “Espero fazer falta. Não tanta quanto o Zano. Mas pensem em mim”, pediu.
Zano, tadinho, nunca mais voltou.