Fonte: Todas as crônicas. Rio de Janeiro, Rocco, 2018, pp. 373-376. Publicada, originalmente, no Jornal do Brasil, de 13/03/1971. 

Às vezes me arrepio toda ao entrar em contato físico com bichos ou com a simples visão deles. Pareço ter certo medo e horror daquele ser vivo que não é humano e que tem os nossos mesmos instintos, embora mais livres e mais indomáveis. Um animal jamais substitui uma coisa por outra, jamais sublima como nós somos forçados a fazer. E move-se, essa coisa viva! Move-se independente, por força mesmo dessa coisa sem nome que é a Vida.

Fiz notar a uma pessoa que os animais não riem, e ela me falou que Bergson tem uma anotação a respeito no seu ensaio sobre o riso. Embora às vezes o cão, tenho certeza, ri, o sorriso se transmite pelos olhos tornados mais brilhantes, pela boca entreaberta arfando, enquanto o rabo abana. Mas o gato não ri nunca. No entanto sabe brincar: tenho longa prática de gatos. Quando eu era pequena tinha uma gata de espécie vulgar, rajada de vários tons de cinza, sabida com aquele senso felino, desconfiado e agressivo que os gatos têm. Minha gata vivia parindo, e cada vez era a mesma tragédia: eu queria ficar com todos os gatinhos e ter uma verdadeira gataria em casa. Ocultando de mim, distribuíam os filhotes não sei para quem. Até que o problema se tornou mais agudo pois eu reclamava demais a ausência dos gatinhos. E então, um dia, enquanto eu estava na escola, deram minha gata. Meu choque foi tamanho que adoeci de cama com febre. Para me consolarem presentearam-me com um gato de pano, o que era para mim irrisório: como é que aquele objeto morto e mole e “coisa” poderia jamais substituir a elasticidade de uma gata viva?

Por falar em gata viva, um amigo meu não quer mais saber de gatos, encheu-se para sempre deles depois que teve uma gata em periódica danação: eram tão fortes os seus instintos, imperativos, que na época de cio, depois dos longos miados plangentes que ecoavam pelo quarteirão, ficava de repente meio histérica e se jogava de cima do telhado, machucando-se toda no chão. “Cruz-credo”, benzeu-se uma empregada a quem contei o fato.

Da lenta e empoeirada tartaruga carregando seu pétreo casco, não quero falar. Esse animal que nos vem da era terciária, dinossáurico, não me interessa: é por demais estúpido, não entra em relação com ninguém, nem consigo próprio. O ato de amor de duas tartarugas não deve ter calor nem vida. Sem ser cientista, aventuro-me a prognosticar que a espécie vai daqui a poucos milênios acabar.

Sobre galinhas e suas relações com elas próprias, com pessoas e sobretudo com sua gravidez de ovo, escrevi a vida toda, e falar sobre macacos também já falei.

Mulher feita, tive um cachorro vira-lata que comprei de um mulher do povo no meio do burburinho de uma rua de Nápoles porque senti que ele nascera para ser meu, o que ele também sentiu em alegria enorme, imediatamente me seguindo já sem saudade da ex-dona, sem sequer olhar para trás, abanando rabo e me lambendo. Mas é uma história comprida, a de minha vida com esse cão que tinha cara de mulato-malandro brasileiro, apesar de ter nascido e vivido em Nápoles, e a quem dei o nome rebuscado de Dilermando pelo que nele havia de pernosticamente simpático e de bacharel do começo do século. Desse Dilermando eu teria muito a contar. Nossas relações eram tão estreitas, sua sensibilidade estava de tal modo ligada à minha que ele pressentia e sentia minhas dificuldades. Quando eu e tava escrevendo à máquina, ele ficava meio deitado ao meu lado, exatamente como a figura da esfinge, dormitando. Se eu parava de bater por ter encontrado um obstáculo e ficava muito desanimada, ele imediatamente abria os olhos, levantava alto a cabeça, olhava-me, com uma das orelhas de pé, esperando. Quando eu resolvia o problema e continuava a escrever, ele se acomodava de novo na sua sonolência povoada de que sonhos – porque cachorro sonha, eu vi. Nenhum ser humano me deu jamais a sensação de ser tão totalmente amada como fui amada sem restrições por esse cão.

Quando meus filhos nasceram e cresceram um pouco, demos-lhes um cão enorme e belo, que pacientemente deixava o menino lhe montar o dorso e que, sem que ninguém o tivesse incumbido, vigiava por demais a casa e a rua, acordando de noite todos os vizinhos com seus latidos de advertência. Dei a meus filhos pintinhos amarelos que andavam rente atrás de nós, embaralhando-nos os passos, como se fôssemos a galinha-mãe, aquela coisa mínima carecia de mãe como os humanos. Dei também dois coelhos, dei patos, dei micos: é que as relações entre homem e bicho são singulares, não substituíveis por nenhuma outra. Ter bicho é uma experiência vital. E a quem não conviveu com um animal falta um certo tipo de intuição do mundo vivo. Quem se recusa à visão de um bicho está com medo de si próprio.

Mas às vezes me arrepio vendo um bicho. Sim, às vezes sinto o mudo grito ancestral dentro de mim quando estou com eles: parece que não sei mais quem é o animal, se eu ou o bicho, e me confundo toda, fico ao que parece com medo de encarar meus próprios instintos abafados que, diante do bicho, sou obrigada a assumir, exigentes como são, que se há de fazer, pobre de nós. Conheci uma mulher que humanizava os bichos, conversando com eles, emprestando-lhes suas próprias características. Mas eu não humanizo os bichos, acho que é uma ofensa – há de respeitar-lhes a natura –  eu é que me animalizo. Não é difícil, vem simplesmente, é só não lutar contra, é só entregar-se.

Mas, indo bem mais fundo, chego muito pensativa à conclusão de que não existe nada mais difícil que entregar-se totalmente. Essa dificuldade é uma das dores humanas.

Segurar um passarinho na concha meio fechada da mão é terrível. Ele espavorido esbate desordenadamente e velozmente as asas, de repente se tem na mão semicerrada milhares de asas finas se debatendo esvoaçantes, e de repente se torna intolerável e abre-se depressa a mão libertando-o, ou entrega-se-o depressa ao dono para que este lhe dê a maior liberdade relativa de uma gaiola. Enfim, pássaros eu os quero nas árvores ou voando, mas longe de minhas mãos. Talvez algum dia, em contato mais continuado no Largo do Boticário com os pássaros de Augusto Rodrigues, eu venha a ficar íntima deles, e a gozar-lhes a levíssima presença. (“Gozar-lhes a levíssima presença” me dá a sensação de ter escrito frase completa por dizer exatamente o que é, é engraçada a sensação, não sei se estou ou não com razão, mas isso já é outro problema.)

Ter uma coruja nunca me ocorreria. Mas uma amiguinha minha achou por terra na mata de Santa Teresa um filhote de coruja, todo sozinho, à míngua de mãe. Levou-o para casa, aconchegou-o, alimentou-o, dava-lhe murmúrios, terminou descobrindo que ele gostava de carne crua. Quando ficou forte era de se esperar que fugisse imediatamente mas demorou a ir em busca do próprio destino, o de reunir-se aos de sua raça: é que se afeiçoara essa estranha ave à minha amiguinha. Relutou muito, via-se: afastava-se um pouco e logo voltava. Até que num arranco, como se estivesse em luta consigo mesmo, libertou-se voando para as profundezas do mundo.

clarice-lispector