Clarice Lispector (1920-1977) já estava solidamente inscrita no primeiro time da literatura brasileira quando, aos 46 anos, tornou-se também cronista.
Tinha publicado cinco romances (Perto do coração selvagem, O lustre, A cidade sitiada, A maçã no escuro e A paixão segundo G.H.) e dois livros de contos (Laços de família e A legião estrangeira), e provavelmente seguiria sendo monogamicamente ficcionista, se a necessidade de ganhar a vida (estava, desde 1959, separada do marido, o diplomata Maury Gurgel Valente, e, de volta ao Rio, criava os filhos, Paulo e Pedro) não a tivesse forçado, em 1967, a aceitar convite de Alberto Dines, editor-chefe do Jornal do Brasil, para escrever uma crônica aos sábados.
Deleitosa para seus leitores, a incursão num novo gênero nunca foi simples e indolor para Clarice, resistente desde sempre à ideia de escrever para ganhar dinheiro. “Eu não sou uma profissional”, dirá ela no final da vida, numa entrevista à TV Cultura, “eu só escrevo quando eu quero”.
Antes de estrear como cronista no JB, em 19/8/1967, sua colaboração na imprensa nada tivera de pessoal. No jornal Comício, a convite de Rubem Braga, escreveu sob pseudônimo a coluna “Entre mulheres”. No Correio da Manhã, assinava como “Helen Palmer” um “Correio feminino”. E no Diário da Noite, outra vez levada por Dines, foi ghost writer da atriz e manequim Ilka Soares na seção “Só para mulheres”.
Agora sem a proteção de um pseudônimo, Clarice Lispector escreveu no JB, ao longo de mais de seis anos, 234 colunas, a última delas publicada em 29/12/1973. Frequentemente, preenchia o espaço com mais de um tema, tendo pingado ali, ao todo, 468 textos, vários deles de fazer inveja aos cronistas mais aplicados. Embora não lhe faltassem elogios, Clarice não se animou a reunir em livro essa produção, o que só aconteceria em 1978, após a sua morte, com a publicação de A descoberta do mundo, reunião de tudo o que ela escreveu para o JB.
Nenhum cronista se expôs tão abertamente como fez Clarice Lispector, capaz de escancarar, do começo ao fim, suas dificuldades na prática do ofício a que a ganhação da vida a condenara. “Ainda continuo um pouco sem jeito na minha nova função daquilo que não se pode chamar propriamente de crônica”, confessou ao cabo do primeiro mês. “E, além de ser neófita no assunto, também o sou em matéria de escrever para ganhar dinheiro. Já trabalhei na imprensa como profissional, sem assinar. Assinando, porém, fico automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como se estivesse vendendo a minha alma.”
A longa prática parece ter amenizado um pouco o sofrimento, e até proporcionado à cronista, senão prazer, alguma gratificação. “É curiosa”, admitiu ela a certa altura, “esta experiência de escrever mais leve e para muitos, eu escrevia minhas coisas para poucos. Está sendo agradável a sensação. Aliás, tenho me convivido muito ultimamente e descobri com surpresa que sou suportável, às vezes até agradável de ser.”