Lambe-lambe, praça Marechal Floriano Peixoto, Londrina, PR, 1958. Foto de Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Mexendo em papéis alheios, Maria Julieta Drummond de Andrade encontrou uma foto velha, datada de 1910, de uma mocinha vestida de branco. Ela posava ao lado de uma cadeira tipo Luís XV, onde sentava uma enorme boneca loura. Ao fundo, uma cortina de paisagem pintada e um pedaço de coluna, dessas greco-romanas que emprestavam às fotografias antigas “uma atmosfera de poesia atemporal”.
A primeira impressão da cronista foi achar a menina séria, metida naquele cenário todo. Depois, observando-a melhor, viu que ela estava “a ponto de achar graça”, como quem “disfarça o esboço de um sorriso” mas não se atreve a quebrar a solenidade do momento – com “o cabelinho preto” cuidadosamente aparado para a circunstância, dava para vê-la contendo o prazer enquanto obedecia às ordens do fotógrafo.
Seu nome, digamos, Maria Carlota, estava escrito no verso do retrato. Além dessa informação e daquele momento eternizado em papel, Maria Julieta nada sabia dela. Era preciso imaginar, portanto. Vai ver a foto foi tirada no dia de seu aniversário. A comemoração explicaria todo o aprumo da menina, delicadamente vestida com uma blusa folgada, separada da saia pequena de três babados por uma fita de cetim, provavelmente vermelha ou azul, “tudo arrematando em renda mimosa”. A mão esquerda ia na cintura e a outra segurava a da boneca – presente da querida madrinha, talvez, que “morando em outra cidade e impossibilitada de ir pessoalmente beijar a afilhada”, mandou uma caixa junto com uma carta amorosa, “em letra inclinada”, pedindo “um retratinho para matar as saudades”.
“Não sei quem é essa garota, nunca me chegaram notícias dela e, no entanto, eis-me aqui a contemplá-la” em busca de seus mistérios, escreveu a cronista. “Como foram seus partos, sua vida em sociedade, seu prazer, suas angústias, seu segredo, talvez sua morte?” Jamais saberemos. Mas quem sabe se, um dia, “por uma dessas artimanhas do destino”, uma senhorinha não abriu o jornal, leu esta crônica e dela extraiu fiapos de memória, achando tudo mais ou menos parecido com suas lembranças esfumaçadas, aquela coluna greco-romana, aquela boneca loura, sem compreender que “é dela mesma, séria e menineira, O retrato que não pôde reconhecer” sete décadas depois.
O instantâneo de Maria Carlota, aliás, foi feito num período em que os fotógrafos proliferavam no Rio de Janeiro. Em “Clic-clac! O fotógrafo!”, João do Rio captura o momento em que esses profissionais, “com o kodak na mão”, passaram a ser quase assediados pelas madames. Desejosas de saírem bem nos jornais ilustrados, espécie de embrião das revistas que surgiriam nas décadas seguintes, iam aonde quer que as chapas estivessem sendo batidas.
Muito, muito antes das selfies e do Instagram, o cronista dava notícia de “mais uma doença nervosa” que acometia a alta sociedade carioca: “a da informação fotográfica, a da reportagem fotográfica, a do diletantismo fotográfico, a da exibição fotográfica”. Nos jornais, as fotos não se restringiam mais a “pessoas notáveis” – “não há cara que não seja publicada”. E não só caras: as ruas, as árvores, “os combustores de iluminação”, a cidade toda passou a ser retratada.
“Esteve ontem no footing?”, pergunta a mulher. “Não, minha senhora”, responde o cavalheiro. “Foi pena. Estavam lá os fotógrafos de todos os jornais ilustrados. Aparecemos todos”, diz vaidosa, provavelmente rememorando a “pose de ave real” que ostentou para as lentes. A obsessão do espelho tinha sido substituída pela obsessão da fotografia. “Há uma senhora que saiu à rua? Zás! Kodak nela! Você vai ali à confeitaria? Instantâneo!” Todos estavam, como estamos ainda, à mercê dos cliques.
Nem mesmo nos espaços particulares a privacidade estava garantida – o cronista achava bem provável que, em breve, os fotógrafos apareceriam de repente dentro da casa das pessoas, cheios de exigências: “Dispa-se e mostre-me como vai para o banheiro! Quero tirar um instantâneo!”. Difícil imaginar o que diria João do Rio se soubesse que, dali um século, as pessoas passariam a se fotografar despidas no banheiro elas mesmas, sem a necessidade de um fotógrafo…
Anos depois, numa “mesa escondida no fundo de um bar” de São Paulo, Antônio Maria refletiu sobre a passagem do tempo ao analisar as 3x4 de seus documentos: o jovem rapazola na carteira de identidade, o adulto confiante na carta de motorista e o homem envelhecido no passaporte. As três fotografias contavam a história de sua vida e, de certo modo, trouxeram para a mesa do presente três Marias do passado, a quem o cronista se dirige.
O jovenzinho da identidade saiu do Recife rumo ao Rio de Janeiro e à conquista dos sonhos profissionais: “mandaste fazer uns ternos, uma porção de camisas e inventaste de comprar um chapéu”. Deixou para trás “uns abraços no tombadilho e muitos adeuses no cais”. A bordo do ita, fez sucesso contando “umas histórias inventadas” para uma roda de moças interessadas. Desde então, “não fizeste outra coisa, senão inventar histórias para engabelar e conquistar os outros”.
Depois, na carteira de motorista, agora com “um bigode de carta de baralho” e olhos penetrantes, atingiu certo equilíbrio na vida. “Tua boca é de quem já provou beijos mais maduros”, e “o que se vê do teu corpo” é de gente que “cuida de si, pensando nos outros”. Vivendo na Bahia, se entrosava com todo tipo de gente, políticos e capoeiristas, e continuava contando “uma porção de histórias” para o deleite geral. Ao seu comando, “os atabaques de um candomblé começavam a bater”, o pai de santo o levava ao peji e as ogãs vinham abraçá-lo, sorrindo. Aquela fotografia “é de um homem que já viveu um pouco e ainda pensa em viver muito mais”.
Por fim, o retrato recente do passaporte: “que é daquele meio sorriso de vitória, que é do bigode de tendências esquerdistas? Onde deixaste os teus cabelos?”. Os olhos outrora pungentes estão cheios de tristezas, mas os outros não notam, “porque eles são pequenos e ninguém acredita que tristeza muita possa caber dentro deles”. São “como as tuas canções” e crônicas, que toda gente canta, toda gente lê, mas “sem se lembrar de ti, sem se aperceber de que cada uma é uma história tua”. “Não estás morto”, arrematou, “mas feneceste, moço”. Desbotou, como fotografia velha.
Sozinho no bar, Maria viajou através de si mesmo durante longos anos, de ita, automóvel e avião. “Naquela hora, porém, apesar das dezenas de pessoas que entravam, bebiam, falavam e saíam” ignorando a presença do cronista, uma certeza o salvou: “longe, devia haver alguém que estava pensando em ti”. Se não houvesse, “era porque estavas meio bêbedo… e ninguém gosta de pensar nos bêbedos”.