A pena engajada de Lima Barreto

Missa campal celebrada em ação de graças pela Abolição da escravatura no Brasil,  Campo de São Cristóvão, Rio de Janeiro-RJ, 1988/05/17. Foto de Antonio Luiz Ferreira.  Coleção Dom João de Orleans e Bragança/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Lima Barreto nunca deu moleza aos donos de jornal – nem aos proprietários abastados, de modo geral. Por conta de suas críticas contundentes e de caricaturas debochadas de poderosos, esteve sempre indisposto com a dita imprensa burguesa. Também por isso, colaborou a vida toda com o que hoje chamaríamos de “imprensa alternativa” – pequenos jornais de bairro, periódicos de circulação curta, páginas universitárias. Mas não só: como escritor relevante de seu tempo, passou pelos principais veículos do Rio de Janeiro, onde desovou cerca de 440 crônicas. Nas páginas de revistas e jornais, publicou também artigos, reportagens, um soneto (o único de sua lavra) e, é claro, romances no formato de folhetim. É impossível, portanto, compreender sua literatura longe da imprensa.

Hoje, no marco de cem anos de sua morte, esta homenagem a Lima Barreto destaca um traço muito original de sua crônica: o engajamento sensível. Poucos cronistas foram capazes de juntar tão bem o retrato da vida comum da cidade com a crítica social. Na esteira do dia a dia do subúrbio carioca, surgiam grandes (e muitas vezes polêmicas) reflexões sobre a sociedade. Lima viu de perto o nascimento da República, cujas contradições expôs com afinco, viveu a ebulição política da Primeira Guerra, a chegada de emigrantes no Brasil. Escreveu sobre tudo isso no calor do momento, às vezes com pontos de vista à frente do seu tempo, só mais tarde valorizados. Esse espírito aguerrido de combate à injustiça, guiado por um democrático senso de coletividade, é o norte da nossa seleta de hoje.

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Maio é “o mês das flores, o mês sagrado pela poesia”. É também o mês de Lima Barreto, que nasceu no dia 13. Ao relembrar a meninice, sua alma foi tomada por “revoadas de sonhos” que desabrocharam num “renovamento” interior. De todas as memórias, a mais especial é a de maio de 1888, “dias antes da data áurea”, quando seu pai chegou em casa e disse: “A lei da abolição vai passar no dia de teus anos”. E passou.

No Largo do Paço, a família foi testemunhar a assinatura da lei. Uma “imensa multidão ansiosa” aguardava diante de um edifício muito alto onde estavam as autoridades. Na janela, o pequeno Lima viu um homem acenando para o povo – provável que tenha sido José do Patrocínio, mas não saberia dizer. “Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o souberam.” A princesa Isabel, também da janela, foi ovacionada: “palmas, acenos com lenço, vivas”. “Fazia sol e o dia estava claro”, e a alegria “era geral, era total”. Era tanta que se estendeu pelos dias seguintes.

Com o pai, o menino foi assistir à missa campal no Campo de São Cristóvão. Do que foi dito pelo padre o cronista quase não se lembrava de nada – mas ficou em sua memória “o barulho de bandas de música, de bombas e girândolas”, os “anjos despedaçando grilhões, alegorias toscas” passando pelas ruas, muitos “bailes populares”, um “desfile de batalhões escolares”. Era “como se o Brasil tivesse sido descoberto outra vez”.

Com sete anos de idade, Lima não conhecia nenhuma pessoa escravizada. Por isso, “o cativeiro não o impressionava”, tampouco “lhe imaginava o horror; não conhecia a sua injustiça”. “Criado no Rio de Janeiro, onde já os escravos rareavam”, faltava-lhe o “conhecimento direto da vexatória instituição para lhe sentir bem os aspectos hediondos”. Mesmo sem compreender a importância daquilo, no colégio público em que estudava “a alegria entre a criançada era grande”. Da algazarra infantil, um grito firmou na lembrança: “Livre! Livre!”. O menino julgava que agora poderia fazer tudo que queria, “que dali em diante não havia mais limitação” às suas fantasias. Depois de sofrer um castigo, um colega lhe disse, decidido: “Vou dizer a papai que não quero voltar mais ao colégio. Não somos todos livres?”.

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Há muito tempo, tendo irrompido “uma epidemia de moléstia terrível” que “matava milhares de pessoas por dia” na capital de um certo país, “a junta do governo se viu obrigada a fazer o serviço compulsório de coveiros e requisitar palácios para hospitais”. Na ocasião, “um médico modesto, mas sábio” escreveu num jornaleco pequeno “um artigo simples, claro, sem arrebiques de péssima literatura pernóstica”, apontando a importância da criação de mais hospitais públicos, distribuídos em bairros distintos, “para sempre poderem eles atender à população eficazmente, nas épocas normais e anormais”. Pouca gente leu “o artigo do honesto facultativo”, que se chamava Mendonça, “mas todos os seus colegas o fizeram, sem que, entretanto, nada dissessem”.

Um mês depois, um tal de doutor Cavalcante publicou no principal jornal da cidade “um artigo desmedido, escrito com o bolor de vocábulos antigos”, que repetia o preceito do senhor Mendonça sem jamais citá-lo. Na Câmara, o doutor Azevedo, outro médico, “que era deputado muito famoso pela sua clínica nas altas rodas da sociedade”, apresentou um projeto “calcado nas ideias do doutor Mendonça” mas amparado somente por citações ao artigo de Cavalcante. Os jornais e os cronistas “gabaram muito o projeto” e ecoaram aplausos para os doutores Cavalcante e Azevedo. O pai da ideia, o simplório doutor Mendonça, teve o nome “enterrado para sempre”. “Assim são as coisas naquele país…”, lamentou Lima Barreto, sem disfarçar muito que falava do Brasil. Por fim, escuta só: vale a pena destacar a leitura desta crônica que o pesquisador de literatura Ronaldo Vitor da Silva gravou especialmente para nós.

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Felismino Xubregas era o nome de um musicista do Maranhão, conhecido de Lima Barreto. O ofício aprendeu no Pará, onde sentou praça e “foi metido na banda de música do batalhão”. Por conta da vocação artística, foi transferido para o Rio de Janeiro. Tocando pistom, Felismino “captou a simpatia” do capitão Faria, que investiu na carreira do músico e “conseguiu que ele frequentasse as aulas do Conservatório”. O pistonista “estudou a valer e acabou sabendo música a fundo”. Quando acabou o tempo de serviço militar, não quis continuar. Deu baixa e foi tentar a vida de artista.

Com suas apresentações, no entanto, “mal ganhava para comer”. As valsas e as polcas que compôs não davam “o dinheiro necessário para viver”. Apesar de tudo, Xubregas “casou-se e veio a ser pai de muitos filhos”. Como chefe de família, “procurou toda a espécie de empregos”. Foi “lenhador em Costa Barros”, “caixeiro de botequim em Maxambomba”, “servente de pedreiro em Sapopemba” e “construtor de fossas, nas redondezas de Anchieta”.

Certa vez, de passagem por Anchieta, Lima encontrou o colega e perguntou: “Que há, Xubregas? Como vais?”. O músico confessou-se aborrecido. O motivo: no teatro da cidade apresentava-se “uma afamada orquestra vienense”. “Não atino”, insistiu Lima. É que Xubregas tinha até escovado a roupa para ir ao teatro, “julgando que a coisa era ao alcance” de suas algibeiras, mas, lá chegando, não pôde entrar – “qualquer lugar era tão caro” que o ingresso significava ficar “sem comer uma semana”. O cronista se surpreendeu com a inocência do amigo: “Pois não sabias disso?”. “Não”, disse o músico, que sempre lera “que a prefeitura tinha erguido aquele teatro para educação do povo”. E ele, Um do povo, tinha ficado de fora. Debochado, Lima respondeu que o teatro foi feito com os contos “extorquidos ao povo”, mas “para educação dos ricos”. Sem dizer mais nada, Xubregas, desolado, limitou-se a lançar um grito retumbante ao se despedir: “Viva a República!”.