Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. II, p.547. Publicada, originalmente, na revista [Careta], de 19/08/1922 e, posteriormente, no livro Marginália, Mérito, 1953, p. 262.

Conheço em Anchieta, subúrbio longínquo desta cidade, um grande músico. Chama-se Felismino Xubregas e nasceu no Maranhão. Sentou praça no Pará, foi metido na banda de música do batalhão; e, vendo o respectivo comandante que ele tinha grande vocação para a “arte”, arranjou-lhe a transferência para o Rio de Janeiro. Isto foi em 1887. Aqui chegado, o nosso pistom, pois era esse o instrumento que ele tocava, captou a simpatia do atual marechal Faria, então simples comandante de esquadrão, que sempre gostou de música e de músicos. O então capitão Faria conseguiu que ele frequentasse as aulas do Conservatório de Música, para aperfeiçoar os seus estudos. Em boa hora isso fez, porque Xubregas estudou a valer e acabou sabendo música a fundo. Acabado o seu tempo de serviço militar, não quis reengajar-se e deu baixa. Andou por aí em “tocatas”, nas quais mal ganhava para comer. Deu em escrever valsas e polcas; mas, mesmo assim, não obtinha o dinheiro necessário para viver. A vida, porém, e a sua continuidade têm tanto império sobre nós que Xubregas, apesar de tudo, casou-se e veio a ser pai de muitos filhos.

Chefe de família, não podia continuar na música, que quase nada lhe dava. Que fez então? Procurou toda a espécie de empregos mais acessíveis. Foi lenhador em Costa Barros, caixeiro de botequim em Maxambomba, servente de pedreiro em Sapopemba; hoje, o seu ofício habitual é o de construtor de fossas, nas redondezas de Anchieta, onde reside.

Há dias, indo até lá, encontrei-o e perguntei-lhe simplesmente:

– Que há, Xubregas? Como vais?

– Vou bem; mas ando aborrecido.

– Por que, Xubregas?

– É coisa da prefeitura.

– Como? Estás metido na política do Brandão, do Pio ou do grande e inolvidável Nestor Areias Mackenzie?

– Não, caro amigo. É questão do teatro.

– Não atino.

– Eu te explico.

– Bem, vá lá!

– Não está aí uma afamada orquestra vienense?

– Está, sei bem; e trabalha no Municipal.

– É verdade o que dizes; e eu, por ser “um do povo” e, além de tudo, músico, tive desejo de ouvir tão famosa orquestra. Escovei a minha roupa e fui até lá, julgando que a coisa era ao alcance das minhas algibeiras.

– Que te aconteceu?

– Quando lá cheguei, tudo era caro, isto é, qualquer lugar era tão caro que, se eu alugasse um, ficava sem comer uma semana.

– Pois não sabias disso?

– Não. Sempre li que a prefeitura tinha erguido aquele teatro para educação do povo.

– Que engano! Ele deve estar por quinze mil contos, extorquidos ao povo; mas foi feito para educação dos ricos. Eis aí!

Xubregas não me disse mais nada; e, ao despedir-se, ergueu um heroico:

– Viva a República!

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