O velho Braga mais velho

Rubem Braga, escritor brasileiro, Paris, 1973.  
© Alécio de Andrade, ADAGP, Paris, 2023. Courtesy Instituto Moreira Salles.

Quinta passada, 12 de janeiro, o patrono do Portal fez aniversário. São 110 anos de Rubem Braga, que segue surpreendendo leitores de todas as gerações com a beleza de sua prosa lírica. O velho Braga, como ele próprio se chamava desde muito jovem, é mesmo o nome mais importante da nossa crônica. Além de ter sido o grande responsável por formatá-la nos moldes que conhecemos bem, foi uma espécie de sol a iluminar a obra de todos os seus colegas, emprestando um pouco de cor à paleta dos cronistas – sobretudo dos que vieram depois.

Foi o caso de Carlinhos Oliveira, 21 anos mais moço, que descobriu com Braga o significado de ser moderno. Antes disso, menino ainda, engatinhando no ofício e só com “as bibliotecas da província atrasadas de 50 anos” à disposição, não conseguia se livrar de uma sensação incômoda de “estar sendo anacrônico” com suas leituras. Mesmo a pena de Machado de Assis, à qual se afeiçoou cedo, lhe parecia antiga, lenta – frente ao automóvel motorizado de Braga, o tílburi machadiano não acelerava o suficiente para o gosto daquele projeto de escriba.

Com Braga, O indiscutível Rubem Braga, Carlinhos aprendeu a “justa aliança entre a emoção do vocábulo exato e a emoção do objeto de que se fala” – que, aliás, aos poucos foi trocando a gravidade de Deus e do demônio pela leveza de “um corpo de mulher, uma onda que se quebra na areia”. A todo momento, Braga “nos lembra onde se encontra a literatura, porque ele sabe; está ali, perto dele, ao seu redor, nas nuvens sobre o mar, nessas moças de que nos oferece breves e inesquecíveis retratos”. Para Carlinhos, não há, na obra do mestre, “uma única página que não seja a cristalização” de uma “experiência efetivamente vivida” – não necessariamente a experiência direta, mas sua “transmudação em verbo”. Em resumo, trata-se de um escritor que “ouve o seu próprio coração”.

Ainda que facilmente acessível pelos leitores, o coração de Braga nem sempre estava aberto para os amigos. Era preciso vencer “o seu indiferente e às vezes antipático semblante” para descobrir seu “jardim de afetos e intelecções, que torna bom e simples o ato de viver”, nas palavras de Carlos Drummond de Andrade. A imagem do jardim, aliás, é bastante oportuna, pois Braga tinha, de fato, um imenso jardim em sua famosa cobertura em Ipanema. Desenhado por Burle Max, o quintal aéreo do cronista – ou “cobertura agrária”, segundo Millôr Fernandes – era morada de uma porção de espécies, animais e vegetais, incluindo um pé de milho, “nascido contra a lei, em plena cidade”, que comprovava que “a poesia não está só nas glicínias”. A poesia está em tudo – mas só os livres de espírito podem vê-la assim, pois “a liberdade consiste, de saída, em ver e sentir por nossa própria conta”.

O poder do Braga, aliás, vem justo dessa habilidade de enxergar coisas. E de contar, numa “narrativa direta e econômica”, “o seu expediente de homem, apanhado no essencial”, e nada mais. Ele é o “poeta do real, do palpável”, e adere à vida vivida “sob uma aparência de sonho e alienação”.

Deitado na rede da cobertura, onde recebia os amigos, Braga “falava de mulheres, da raridade de um cotovelo bonito, de paixões, arrasadoras ou frívolas”, disse Paulo Mendes Campos – o primeiro, ao que tudo indica, a epitetar Braga de sabiá. Mas, quase sempre, a conversa acabava “no mato, onde ele gostaria de viver, caçando, pescando, bestando e dormindo”. Porque Assim canta o sabiá: bonito mas arredio, com o pio discreto, pensando mais na roça de Cachoeiro do Itapemirim do que na cidade do Rio de Janeiro. Nenhuma “boate lhe deu prazer parecido ao que sentiu na choupana de um velho caboclo do Acre, onde compartilhou da cachaça e do peixe moqueado do seringueiro, entre vozes distantes de bichos noturnos”.

Não à toa, em um dos poemas que Vinicius de Moraes escreveu para o amigo, Braga é descrito como “Grave em seu gorro de campanha, suas sobrancelhas e seus bigodes circunflexos/ Terno em seus olhos de pescador fundo/ Feroz em seu focinho de lobo solitário”, mas também “Delicado em suas mãos e no seu modo de falar ao telefone” – delicado como a espécie de orquídea batizada em sua homenagem, a Physosiphon bragae Ruschi, que floresce na Mata Atlântica entre os meses de outubro e janeiro. Bem a tempo de seu aniversário.

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Nota do Editor: falando em Vinicius, o poema mencionado chama-se “Mensagem a Rubem Braga”. Há, também, o belo “Soneto no sessentenário de Rubem Braga”, não aproveitado por nós mas indicado para a leitura.