Placas, Nova Iorque-NY, 1986. Foto de David Zingg/ Acervo Instituto Moreira Salles.
“Is this an elephant?”, indagou a professora de inglês segurando um objeto, com um “ar de quem propõe um grave problema”. A tendência imediata de Rubem Braga foi dizer não, mas como nunca é sábio deixar-se levar pelo primeiro impulso, achou melhor analisar o objeto com cuidado. Aquilo “não tinha nenhuma tromba visível”, tampouco as “quatro grossas patas” dos paquidermes, nem “o pequeno rabo que caracteriza o grande animal”. Não era, portanto, um elefante. “No, it’s not!”, respondeu com segurança. A Aula de inglês prosseguiu com um suspiro satisfeito da professora, que logo emendou outra pergunta: “Is it a book?”.
Essa era fácil. “Tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro à primeira vista no meio de quaisquer outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras”, escreveu o cronista, que não levou nem dois segundos para dizer: “No, it’s not!”. A professora sorriu novamente. Mas “aquela mulher era um desses espíritos insaciáveis que estão sempre a se propor questões”, dos que “se debruçam com uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas”, e fez uma terceira pergunta: “Is it a handkerchief?”.
Braga não tinha ideia do que era um handkerchief, mas achou a palavra extremamente antipática. Por conta de sua disposição lexical e de sua rude sonoridade, só poderia significar coisa incômoda. Talvez fosse hipoteca, quem sabe chefe de serviço, relógio de pulso, enxaqueca. Fosse o que fosse, sabia que o objeto nas mãos da professora não era um handkerchief, e respondeu impávido, “com certa violência”: “No, it’s not!”.
A pergunta seguinte da professora “foi precedida de um certo olhar em que havia uma luz de malícia, uma espécie de insinuação, um longínquo toque de desafio”. Com a voz mais lenta, deixando entrever que se tratava de uma interrogação decisiva, ela quis saber: “It is an ash-tray?”.
Aí, o cronista foi tomado por uma grande alegria, pois sabia que ash-tray é cinzeiro. E, fitando o objeto que ela apresentava, notou “uma extraordinária semelhança entre ele e um ash-tray”, aquele “objeto de louça de forma oval” que conhecia tão bem, com cerca de 13 centímetros de comprimento, com duas ou três reentrâncias curvas e “uma espécie de bacia” na depressão central para abrigar baganas e palitos de fósforo riscados. Respondeu que sim, aquilo era um ash-tray: “Yes!”.
O rosto da professora ficou “completamente iluminado por uma onda de alegria”. Os olhinhos brilharam “e um largo sorriso desabrochou rapidamente” nos lábios que, instantes antes, estavam “franzidos pela meditação triste e inquieta” do suspense. “Very well! Very well!”, disse, comemorando a vitória do pupilo. Braga, naturalmente tímido, “ainda mais no lidar com mulheres”, se assustou um pouco com a efusão da moça. Mas saiu dali satisfeito, andando pela rua com passos firmes. Estava tão orgulhoso de sua conquista que, se tivesse topado com o embaixador britânico, seria capaz de tomar-lhe o cachimbo da boca e declarar, seguro de sua prosódia: “It’s not an ash-tray!”.
Diferente de Braga, Antônio Maria nunca fez aulas de inglês – o que não o impediu de se aventurar por Nova York. À sua disposição, o cronista tinha só um diminuto dialeto à base de “please”, “I want” e “how are you”. E foi com isso mesmo que comeu, bebeu e comprou “discos, meias, sapatos, calças e canetas esferográficas” por lá. Geralmente, preferia ser um mudo internacional a arriscar alguma comunicação – do contrário, o risco de se meter em alguma enrascada era real. Como na vez em que o amigo Fernando Lobo se sentou numa cadeira de barbeiro, disse “yes” e “lhe fizeram um xampu de meia hora e dois quilos de espuma”. Ou quando Maria quis pedir um maço de cigarros num restaurante, juntou “todas as palavrinhas da frase” com o maior cuidado e “disse-as bem direitinho” ao garçom, que prontamente trouxe um prato de “hambúrguer com salada de batatas”.
Para ele, no entanto, a ignorância linguística tinha certa graça: “Chega a ser fascinante a gente viver num país sem falar e sem entender”. É, sem dúvida, Um mundo novo. E tudo bem que alguns nova-iorquinos rissem daquele brasileiro deslocado – durante a Segunda Guerra, quando os Estados Unidos montaram uma base naval em Recife, o cronista já tinha visto muito pernambucano vendendo lagartixa de parede para oficiais americanos como se fosse filhote de crocodilo.
“Não sei quando, como, ou se um dia ainda voltarei aos Estados Unidos”, escreveu Maria. De todo modo, não podia se queixar da viagem – “vi muito, senti mais ainda”. “E é mais importante aquilo que a gente sente sentado”, possivelmente numa mesa de bar, “do que numa viagem de volta ao mundo, cercado de cicerones por todos os lados”.
Paulo Mendes Campos, embora tenha sido um tradutor experiente, dizia jamais ter conseguido falar razoavelmente uma língua estrangeira, “inclusive a dos portugueses”. Fez sua própria Torre de Babel, compilando vários causos idiomáticos. Certa vez, na China, aprendeu que era simpático dizer “ganbei” durante um brinde – a expressão significa algo como “copo seco” e funciona como incentivo aos convivas para virarem seus cálices. “Pois num jantar, na presença de senhoras e pessoas gradas”, ele levantou sua cachacinha de arroz e gritou “ganbei” triunfantemente. Uma pesada consternação tomou conta do ambiente. Foi assim que o cronista entendeu que se aventurar por uma língua tonal é coisa séria, e qualquer entonação diferente, qualquer vogal preguiçosamente mais prolongada pode mudar por completo o sentido de uma palavra.
Nem os calejados escapam de eventuais escorregões em línguas estrangeiras. Em Londres, um amigo diplomata que sabia “inglês como gente grande” ligou para uma agência funerária e encomendou uma coroa para velar um compatriota falecido. “Qual não foi o seu espanto, e de todos os brasileiros presentes ao velório, quando viu sobre o peito do defunto uma enorme coroa de metal”: desavisado, tinha encomendado “crown”, dessas que vão na cabeça de monarcas, em vez de “wreath”, de flores.
Em Petrópolis, durante as férias de verão, uma senhora inglesa fez amizade com uma brasileira, que não falava inglês. A falta de compreensão não as impedia de conversar o dia todo, aos improvisos. “O método era bem complicado”, mas no fim dava certo – ou melhor, quase sempre. Uma manhã, a brasileira “quis saber se a outra também vira a boiada que passara de noite pela estrada”, mas a inglesa não entendia. Em vão deram as duas muitas voltas, sem chegar a nenhum entendimento. Até que a brasileira perguntou se a inglesa sabia o que era “beef”. Claro, sabia. Pois então: à noite, tinha passado um “beef” vivo, muitos “beefs” vivos, dezenas e dezenas de “beefs” vivos pela estrada.
Outro amigo, em Nova York, gostava de “traduzir rifões e provérbios” brasileiríssimos ao pé da letra para a língua de Shakespeare, usando-os “como se fossem suas expressões espontâneas”. Os americanos “admiravam a sua graça e invenção, quando dizia em inglês ‘cada macaco no seu galho, ‘você parece que viu um passarinho verde’ e coisas que tais”. Mas uma vez, sem saber, instaurou pânico numa farmácia. Perguntou algo a um funcionário, e ao ser informado de que o que procurava estava bem ali, em sua frente, disse sorrindo que “se fosse uma cobra, me picava”. “Snake?! Where is the snake?!”, se desesperou o atendente. Até explicar que em português qualquer coisa pode ser uma cobra, the cow had already gone to the swamp.