Periódico
Manchete

Publicada nos livros O cego de Ipanema, de 1960 e Alhos e bugalhos, de 2001.

Jamais consegui falar razoavelmente ainda uma língua estrangeira, inclusive a dos portugueses. Quem nasce no continente americano não possui língua própria, resignando-se a falar mal o idioma dos outros.

Quando pus meus pés em Paris, sabia de cor alguns poemas de Baudelaire ou Mallarmé; pois, algumas horas mais tarde, precisei de comprar algodão. O farmacêutico me perguntou, impaciente, o que eu desejava; antevi o desastre. Naquele primeiro contato com o estrangeiro, a minha timidez vocabular assumiu um aspecto grave, obliterando-me por completo a memória. Seria incapaz naquele momento de lembrar-me que “le lion est le roi des animaux”. Como em sonho, respondi com automatismo que desejava amidon, embora estivesse absolutamente certo de que algodão em francês não era esta palavra. Amidon?! Riu-se de mim o homem, mas reafirmei, covardemente impávido, que desejava era amidon mesmo. Saí humilhado com o meu pacotinho de amido na mão, derramando-o (vingança primária) na porta da farmácia, e insultando-me em voz alta: “Coton, seu burro, coton”.

Na China ensinaram-me a dizer “gambê”, significando, num brinde, que estamos convidando os demais a ver o fundo do cálice. Pois num jantar, na presença de senhoras e pessoas gradas, levantei a minha cachacinha de arroz e disse “gambê” triunfantemente. Vai brincar com a língua chinesa. Não entoei direito a palavra, mudando-lhe completamente o sentido, causando em torno uma pesada consternação. Baste dizer que eu deveria ser expulso do recinto, não fosse indiscutível a minha inocência.

Tenho um amigo diplomata que sabe inglês como gente grande. Mas em Londres, onde servia, morrera um compatriota nosso meio importante; meu amigo telefonou a uma agência funerária, pedindo que enviassem ao morto uma coroa. Qual não foi o seu espanto, e de todos os brasileiros presentes ao velório, quando viu sobre o peito do defunto uma enorme coroa de metal: havia encomendado crown, quando a palavra certa seria wreath.

Uma senhora inglesa, recém-chegada ao Brasil, foi passar o verão em Petrópolis na companhia de uma amiga, que não sabia inglês. O que não impedia as duas de conversar o dia todo. O método era bem complicado, embora no fim desse certo, quase sempre. Uma manhã, a brasileira quis saber se a outra também vira a boiada que passara de noite pela estrada. A inglesa não chegava a entender. Depois de várias voltas infrutíferas, a brasileira perguntou se a inglesa sabia o que era beef? Claro. Pois pela estrada tinha passado beef vivo, muitos beefs vivos, dezenas e dezenas de beefs vivos. Durante uma semana, até que chegasse socorro no sábado, quando os maridos subiam e desfaziam as dúvidas remanescentes, a senhora inglesa custava a dormir, tentando imaginar que diabo poderia ser beef vivo, temendo ao mesmo tempo uma nova invasão desses seres misteriosos que andavam aos bandos.

Conheci uma argentina simpática, que achava ridículas as nossas palavras “pente” e “frango” (embora ela dissesse “peine” e “gajina”). Fui à forra uma noite, durante uma recepção, em que ela justificou o seu ar abatido com esta afirmativa encantadora: “No, no estoy triste: tengo catarro”.

Há também o caso do cearense, brilhando para a família completa num restaurante de Paris, ao fazer os seus pedidos, muito desenvolto, e que a certa altura chamou o garçom: “Qu’est-ce que vous me recommandez pour le désert”? E deu-lhe o garçom a resposta parisiense: “Mais, un chameau, évidemment”.

Ao visitar o Rio o ator François Périer, fui entrevistá-lo para um jornal. O homem levou um susto danado, quando uma bonita confrade presente tirou da bolsa um cigarro e pediu-lhe: “Donnez-moi, s’il vous plait, un phosphore”. A moça ficou tão passada com o seu engano que tratou de arranjar uma bolsa de estudos na França.

O Senador Benedito Valadares estuda francês com afinco e devoção há muitos anos, é este o lado gratuito de sua existência. Às vezes, ele se toma de amores por um vocábulo ou expressão apanhado nos romances de Loti ou Bourget. Certa feita, esqueceu as tricas políticas, passando, mais de um mês absorto na doçura singela de uma frase, espantando colegas e amigos; vinha alguém lhe falar sobre a sucessão e outros bichos e, ao meio da conversa, o Senador tomava um ar extático, fora do mundo, dizendo para si mesmo: “Et Maurice est un très gentil garçon”. O que foi, perguntavam-lhe. Dizia que não era nada, não.

Fernando Sabino viajava de avião, tendo à sua frente uma cantora francesa e o cantor brasileiro que atende pelo apelido de el broto. O avião jogava muito e o artista nacional, pretendendo tranquilizar a francesa, virou-se para trás três vezes, perguntando ao escritor como eram em inglês as palavras “nuvem”, “tempestade” e “não há perigo” (a fim de formar com elas a frase “no storm: clouds: no danger”). As palavras foram subsidiadas, com a advertência de que a moça não era inglesa e sim francesa. El broto responde: “Mas é que eu não sei falar francês”.

Fernando Lobo, logo que chegou aos Estados Unidos, pouco depois de Pearl Harbor, fez sucesso com uma piada involuntária, quando num restaurante pediu um guardanapo para limpar a boca. Mas, em vez de “napkin” (guardanapo), disse “jap” (japonês); no lugar de “mouth” (boca), falou “mouse” (camundongo), sendo o resultado final esta obra-prima: “Quer me trazer um japonês para eu limpar meu camundongo”.

Outro amigo gostava, em Nova Iorque, de traduzir rifões e provérbios, como se fossem suas expressões espontâneas. Os nativos muito admiravam a sua graça e invenção, quando dizia em inglês “cada macaco no seu galho”, “você parece que viu passarinho verde” e coisas que tais. Mas uma vez provocou certo pânico numa drugstore, quando, ao informar-lhe um empregado que a máquina de cigarros estava atrás dele, comentou, sorrindo: “Se fosse uma cobra, me mordia”. “Snake?! Where is the snake”? — Gritava o homem.

Sabe o leitor o que é um “Schelgesetzentwurf”? Nem eu. Nem Mark Twain. Mas aprenda com este a tirar proveito da sua ignorância linguística. Embora sem saber seu sentido, o humorista americano dizia que se preocupava com o “Schelgesetzentwurf” como se fosse um filho seu e por nada deste mundo resolveria o problema formulado nessas 18 letras.

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