Esculturas de Alfredo Ceschiatti "Pomba", Rio de Janeiro-RJ, 1968 circa. Foto de Marcel Gautherot/ Acervo Instituto Moreira Salles.
De madrugada, recolhido em seu escritório, Drummond foi surpreendido por um Visitante noturno que, como todos os insetos, apareceu sobre a mesa “sem se fazer anunciar”. Era “uma coisinha insignificante, encolhida sobre o papel e ali disposta, aparentemente, a passar o resto de sua vida mínima”.
O poeta, que tinha “o hábito de ficar altas horas entre papéis e livros”, pensou em esmagá-lo. Chegou a mover a mão, mas se deteve – “não seria humano liquidar aquele bichinho só porque estava em lugar indevido”. Embora sua “ignorância em entomologia” não lhe permitisse saber se era um inseto nocivo, na dúvida, o melhor era deixar viver aquilo que sequer tinha nome para ele – o que pouco importava. Não quis “recorrer às enciclopédias para identificar o visitante”, pois na multidão de insetos “imagináveis e inimagináveis, só lhe interessava aquele, companheiro noturno vindo de não se sabe onde, a caminho de ignorado rumo”.
Desse momento de empatia, “uma ternura imprevista brotou” no coração de Drummond, intrigado com aquele ser minúsculo capaz de subir até o décimo primeiro andar do prédio só “para vê-lo, fazer-lhe companhia, em sua noite de trabalho”. Envolto em considerações sobre mistérios da natureza, o poeta já não escrevia, de olho no bicho que parecia olhá-lo de volta. “E os dois, homem e inseto, assim ficaram longo tempo”, mudos. E, num momento de distração, o inseto desapareceu, “decepcionado talvez com a incomunicabilidade dos gigantes”. Uma pena que ninguém nunca tenha sido capaz de captar algo da conversa dos insetos. Exceção feita, é claro, aos ficcionistas – “mas quem leva a sério ficcionistas?”.
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Muita gente olhando para o céu. Rubem Braga, curioso, quer saber o que é. Disco voador não pode ser, porque já “perdeu o cartaz com tanto satélite beirando o sol e a lua”. De fato, trata-se de algo muito “mais sensacional e comovente”: um gavião sobrevoando o centro do Rio de Janeiro, provavelmente em busca de pombas para matar.
Daí, aquela gente toda retornou “à contemplação de um drama bem antigo”, que divide as pessoas em dois grupos, o partido das pombas e o partido do gavião. “Os pombistas ou pombeiros”, para evitar falar columbófilos, “querem matar o gavião”. Os aliados deste, no entanto, argumentam que “ele não é malvado” e que “come a sua pombinha com a mesma inocência com que a pomba come seu grão de milho”.
Braga, admirador de aves de qualquer espécie, não quis tomar lado: “admiro a túrgida inocência das pombas e também o lance magnífico em que O gavião se despenca sobre uma delas”, escreveu. E seguiu com uma paráfrase de Saint-Exupéry: “Comer pombas é a verdade do gavião”, assim como “matar um gavião no ar com um belo tiro pode também ser a verdade do caçador”.
Mas pensar sobre isso apertou o melancólico coração do cronista, que tinha recentemente doado seus passarinhos, um casal de canários e um corrupião. Braga fazia muitas viagens curtas e desconfiou que a empregada não cuidasse muito bem deles na sua ausência – punha água e comida, mas “não lhes fazia companhia”. Pensava no animado e tagarela “corrupião tristemente trancado em uma sala o dia inteiro, sem ter com quem conversar”, e entristecia. O melhor era dá-los, apesar da saudade. Quando chovia, mesmo já sem seus bichos, corria para tirar as gaiolas da varanda, onde ficavam quando estava quente. E ao se dar conta de que não precisava mais ter aquela aflição, sentia um certo alívio: “Meu coração está mais triste, mas mais leve também”.
“Que o gavião mate a pomba e o homem mate alegremente o gavião”, concluiu Braga. E ao homem, “se não houver outro bicho que o mate, pode lhe suceder que ele encontre seu gavião em outro homem”. Porque a vida é mesmo rapina.
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Diferente de boa parte dos moradores do Leme e do Leblon, no Rio, Clarice Lispector não quis saber das duas baleias encalhadas nas praias, surgidas da “arrebentação de onde tinham tentado sair sem no entanto poder voltar”. Diante da provável Morte de uma baleia, Clarice sentiu horror e não quis sair de casa, no Leme, para não topar com o sofrimento do bicho. Mas ouviu relatos e boatos.
Apesar de descomunais, as baleias eram apenas filhotes. Uma delas, perto da morada da escritora, “agonizava já há oito horas”, teimando em sobreviver. Aguentou até os disparos que tinham feito contra ela, não se sabe se por esporte ou piedade. Enquanto isso, corria a notícia pavorosa, “no limiar do horror”, de que a baleia do Leblon era retalhada viva para o comércio, “pois carne de baleia era ótimo de se comer”. O homem é mesmo “o mais grave de todos do reino animal”. “Maldito seja aquele que a comerá por curiosidade”, ponderou Clarice. “Só perdoarei quem tem fome, aquela fome antiga dos pobres”.
A agonia do bicho provocou na cronista reflexões sobre a vida e a morte, como de costume. “Detesto a morte”, escreveu. “Deus, o que nos prometeis em troca de morrer? Pois o céu e o inferno nós já os conhecemos” – cada um, em segredo, “já viveu um pouco do próprio apocalipse”, já provou um pouco da sua própria morte.
Tomada pelo absurdo daquela situação, Clarice continuou: “Como acreditar que não se espera nem a morte para um ser comer outro ser? Não quero acreditar que alguém desrespeite tanto a vida e a morte, nossa criação humana, e que coma vorazmente” aquilo que ainda agoniza, “só porque na verdade somos tão ferozes como um animal feroz, só porque queremos comer daquela montanha de inocência que é uma baleia”. “Nunca atingiremos em nós o ser humano”, concluiu, “porque desistir de nossa animalidade é um sacrifício”.