Como nascem as canções

Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), São Paulo-SP, 1961. Foto de Otto Stupakoff/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Paulo Soledade foi um compositor conciso. Seu cancioneiro é modesto, com cerca de apenas 40 composições, mas abarca alguns clássicos incontestes da música brasileira. Além de parceiro de Tom Jobim, Vinicius de Moraes e, entre outros, Antônio Maria, Paulo foi próximo de toda a patota da crônica e circulava muito bem pelas noites cariocas – apesar de ter sido um boêmio moderado que bebia somente cerveja, amava a noite e nela se perdia com os amigos sempre que a ocasião se apresentava. José Carlos Oliveira, o nosso Carlinhos, traça um perfil breve do amigo na crônica “Assim nasce uma canção”.

Sua profissão era, na verdade, comandante da Panair. Foi o único da geração lendária dos anos 1950 a literalmente andar com a cabeça nas nuvens. No fim da década, porém, sua vida precisou de um pouso forçado por conta de um problema grave no pulmão direito. Obedecendo ordens médicas, retirou-se para uma fazenda e trocou a badalação da boemia do Rio pela calmaria do interior do Paraná, onde permaneceu por quatro lentos anos. Finda a temporada de exílio bucólico, submeteu-se a uma cirurgia bem-sucedida de lobectomia. Mas, “ao sair da enfermaria, recebeu uma notícia desalentadora: a recuperação seria longa e problemática”. Um repouso obrigatório e absoluto de seis longos meses o aguardava. Então, ele “que vivera em velocidade sobre as nuvens, que colecionava cidades, que não perdia a ocasião de aproveitar as coisas boas da existência”, voltou para o Rio e se viu habitando, imóvel, uma cama.

Paulo foi tomado por uma “profunda tristeza” e “acreditou que nunca mais recuperaria o antigo vigor físico”. Chegou mesmo a desejar a morte. “Até que um dia acordou com o pressentimento de que a felicidade se aproximava”, daqueles que ressoam nos músculos, na pele, no corpo todo. Levantou-se da cama, abriu a janela e viu “uma profusão de flores silvestres subindo a montanha em grande velocidade”. Parecia um milagre natural de uma bela paisagem de primavera. De repente, aquilo lhe devolvera a saúde e a plenitude da vida. Tomado de felicidade, pôs-se a cantarolar uma marcha-rancho que compunha na hora, de improviso: “Vê? Estão voltando as flores!/ Vê? Um novo céu se abrindo!/ Vê? Como é bonita a vida!/ Vê? Há esperança ainda!”. Assim nasceu a otimista “Estão voltando as flores”, eleita como hino da comemoração de 120 anos do Instituto Butantã, em 2021, ao final da mais grave fase da pandemia. Vale a pena conferir a interpretação de Renato Braz junto à Orquestra Brasil Jazz Sinfônica.

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Durante muitos anos, Otto Lara Resende acreditou que a letra de “Parabéns pra você” fosse de Manuel Bandeira, conta em "Uma letra e suas voltas". Nunca lhe ocorreu perguntar ao poeta o que muitos desavisados afirmavam: certa vez, ao ouvir a música original durante uma festa, Bandeira “sentou-se e produziu na hora a singela tradução”, subitamente inspirado.

Fazia todo o sentido, já que “Bandeira foi um dos mais, senão o mais musical dos nossos poetas, com licença do Vinicius, que é outro departamento”. Quando ouviu João Gilberto pela primeira vez, logo que despontou, ele “gostou do violão, da batida e da voz” do baiano. “É samba de câmera”, disse para o colega Armando Nogueira, “para ser cantado ao ouvido da amada, já que o arranha-céu não permite mais a serenata”. Foi amigo de todos os seresteiros da Velha Guarda, de Sinhô, parceiro de Villa-Lobos e de Jayme Ovalle, de Francisco Mignone e de Camargo Guarnieri. Poderia muito bem ser o autor da versão brasileira de “Happy birthday to you”, portanto. Mas não é.

Originalmente “um canto cordial para começar o dia na escola”, a trovinha americana é de autoria da professora Mildred J. Hill, que cantava “good morning to all” para os alunos antes de começar as lições. No aniversário de um deles, surgiu a paródia do “happy birthday” com o nome do aniversariante, que logo assumiu o posto de letra oficial. Quando a música chegou no Brasil, Almirante promoveu no rádio um concurso para premiar a melhor letra em português, e a vencedora foi Berta Celeste Homem de Melo, uma farmacêutica de Pindamonhangaba, no interior de São Paulo. Seu verso inicial era “Parabéns, parabéns”, mas o povo o transformou em “Parabéns pra você”. E assim ficou. “Bom parceiro, o povo.”

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O compositor Lamartine Babo, conta Paulo Mendes Campos em “O bom humor de Lamartine”, recebia várias cartas de fãs. Vera, uma moça de 18 anos, “começou a enviar-lhe cartas bem escritas e sérias, datadas de Boa Esperança”, em Minas Gerais. Impressionado com a inteligência da jovem, Lamartine foi ficando interessado, “a imaginação trabalhando, passando da curiosidade vaga a uma atenção quase obsessiva”. Respondia a todas as cartas e instigava a correspondente “à discussão dos assuntos mais graves a fim de prová-la”. Sempre em estilo caprichado, as respostas vinham anunciando “um espírito extremamente perspicaz e profundo para uma pessoa tão jovem”.

Um dia, Lamartine não resistiu e embarcou de trem para Boa Esperança. Foi recebido com festas e homenagens no clube recreativo local e “tratou logo de tentar descobrir a identidade da moça”. Mas ninguém queria dizer nada. Apenas “riam estranhamente” e desviavam do assunto. Disposto a encontrar a misteriosa missivista, o compositor “pôs-se a namorar a mais balzaquiana e menos sedutora das moças presentes”. Na pista, “passou-lhe uma conversa em grande estilo”, até que ela, “compadecida e lisonjeada, confessou quem era Vera, a autora inteligente das cartas: o irmão dela”.

Professor de latim do colégio, “Vera” lia em público as cartas “enternecidas de Lamartine”, bem como suas próprias respostas, para o deleite de toda a cidade. As bem-traçadas eram entretenimento para gozação geral. “Qualquer outro, se não chegasse a dizer uns bons palavrões, pelo menos ficaria arrasado com a grotesca frustração”, mas Lamartine não, blindado pelo seu bom-humor. No caminho de volta, pensando na presepada, escreveu no trem a belíssima “Serra da Boa Esperança”, que uma esperança encerra. Rindo de si mesmo, repetia em voz alta: “Bem feito, Lamartine, quem te mandou ser romântico?”.