Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 7/01/1980.

Era comandante da Panair. Homem alegre, excelente companheiro. Bem casado, dois filhos pequenos e adoráveis. Adoeceu do pulmão. Um grave problema no pulmão direito. Licenciado (ele que vivia para voar), foi para uma fazenda no interior do Paraná, a 50 quilômetros da cidade histórica da Lapa. Passou ali quatro longos, tão longos anos, embora gostasse dos cavalos, dos bosques, dos riachos que abrem uma brilhante e rumorosa fenda entre as colinas. Tinha saudades do Rio, das praias, dos seus amigos boêmios que formaram uma geração legendária na zona sul carioca.

Em junho de 1960, submeteram-no a delicada operação cirúrgica, chamada lobectomia, na qual o cirurgião trabalha no lóbulo superior do pulmão afetado. A cirurgia foi bem-sucedida, mas, ao sair da enfermaria, recebeu uma notícia desalentadora: a recuperação seria longa e problemática. Ele que vivera em velocidade sobre as nuvens, que colecionava cidades, que não perdia ocasião de aproveitar as coisas boas da existência, depois de quatro anos de exílio no campo, teria ainda que se conservar em repouso absoluto por seis meses. Ansiava por voltar a trabalhar, por voltar a viver intensamente. Pensava no futuro, na segurança de sua pequena e encantadora família: a mulher, o menino, a menina.

Foi quando uma profunda tristeza se apossou dele. Acreditou que nunca mais recuperaria o antigo vigor físico. Conheceu a funda, irremediável amargura: desejou a morte. Jazia imóvel na cama, num apartamento da rua Rodolfo Dantas, em Copacabana. Até que um dia acordou com o pressentimento de que a felicidade se aproximava. Era um pressentimento confirmado pelas sensações: seus músculos, sua pele, estavam alegres, seu corpo estava leve, seu sangue corria cálido nas veias. Levantou-se da cama, abriu a janela: viu a paisagem, a montanha de pedra e árvores, e uma profusão de flores silvestres subindo a montanha em grande velocidade. Entre setembro e outubro, contemplava a primavera: O céu sorria azul por cima dele. Então...

Oh! Então ele cantarolou! Seu espírito operara o milagre de lhe devolver a saúde, o corpo confirmava o regresso da plenitude da vida e esses dois eventos mágicos, combinados, cristalizavam-se agora numa canção.

Vê? Estão voltando as flores!
Vê? Um novo céu se abrindo!
Vê? Como é bonita a vida! 
Vê? Há esperança ainda!

Assim nasceu uma das obras-primas de Paulo Soledade, o compositor, o boêmio que só bebe (e moderadamente) cerveja e, contudo, ama a noite, na qual se perde com os amigos, sempre que a ocasião se apresenta. Achei que devia contar a historinha completa dessa marcha-rancho imortal, porque ela foi evocada há poucas semanas num programa de televisão, como exemplo de hino de exaltação à vida. Uma senhora, entrevistada no programa, confessou: na noite em que pretendia suicidar-se, por desgosto, foi salva pela canção do comandante Soledade. Ela não conhecia a música, estava com um pé no abismo: e de repente, na voz de Helena de Lima, o chamamento à alegria lhe veio forte, imperioso: 

Vê? As nuvens vão passando... 
Vê? Esta manhã sorrindo... 
Vê? O sol iluminando
Por onde nós vamos indo!

Nosso amigo Soledade, feliz, no bar, não leva a sério o sucesso. Seria um menestrel bissexto se não tivesse produzido, regularmente, canções em pequeno número, mas todas consideradas magistrais pelos críticos e, especialmente, pelo povo. Ele não compõe por dinheiro nem por obrigação. Diz: “Ninguém nunca me viu andando por aí com um violão debaixo do braço”. Sua atitude de compositor é existencial: quando um tema caído do céu coincide com os sentimentos que lhe empolgam o coração, ele chega em casa e ali está o violão, com o qual não anda nas ruas porque, quando criança, aquilo era sinal de malandragem, a família Soledade proibia.

Mesmo assim, trabalhando na moita, foi ele quem musicou os poemas de Vinicius de Moraes, um deles parecendo ter nascido junto com os versos, tão perfeitamente correm juntos. “Ah, minha amada de olhos ateus”. “Ó minha amada, que olhos os teus! São cais noturnos. Cheios de adeus...” Quem não se comove ouvindo isso? E quem, no meio da confusão carnavalesca, não estremece ao entoar a formosa lenda da estrela-do-mar nascida da união de um pequenino grão de areia que um dia, olhando o céu, viu uma estrela? Essa canção tem também uma história: começa com uma carta, recebida pelo Paulo, e escrita por uma parenta distante que passava uma temporada no hospício. No meio de suas confissões, ela esboçava confusamente a fábula do grão de areia, esse conto de fadas surrealista. Lendo a carta, faiscou na consciência do artista a chispa de uma nova canção. (Escrevi “faiscou”, depois acrescentei “chispa”, apenas porque hoje me sinto estilisticamente alegre. É uma forma indireta (poética) de sugerir o apelido de Paulinho Soledade: “Centelha”)

Isso tudo nós conversamos uma noite dessas, no bar, ele tomando moderadamente sua cerveja e eu bebendo cafezinho. Quando voltei para casa na madrugada, pensei contente “Se eu ainda fosse pequeno, quando crescesse, iria ser compositor popular”. Belo sonho! Mais belo ainda por ser absolutamente irrealizável...

jose-carlos-oliveira