Publicada nos livros Hora do recreio, Sabiá, 1967, e O mais estranho dos países, Companhia das Letras, 2013.
O Nássara me contou que, há muitos anos, estava em um café na companhia de Francisco Alves e Luís Barbosa. O caricaturista era mocinho e queria colocar na praça suas primeiras composições carnavalescas. Os dois outros lhe falaram no talento de um rapaz, fiapo de gente, que deveria chegar. Daí a pouco, Nássara era apresentado a um sujeito magrinho, todo sorriso, mas que não chegava a ter nem mesmo um físico de concorrente. Diga-se de passagem, que a música popular andava numa fase transitória, muito pouco brasileira, sofrendo de um pedantismo insuportável nas letras, nas interpretações e na melodia. Chico Alves pede ao moço magro para cantar alguma coisa nova. Lamartine limpou a garganta com satisfação, trauteou a introdução de uma marcha e foi cantando com alegria e sem voz:
Quem foi que inventou Brasil?
Foi seu Cabral, foi seu Cabral,
No dia 21 de abril,
Dois meses depois do Carnaval.
Nássara deixou esquecidas dentro do bolso as composições que desejava apresentar, e entendeu logo que o moço magro já tinha vencido antes de correr. A música popular estava salva, tinha encontrado o caminho da simplicidade, da jovialidade, do brasileirismo autêntico.
Lamartine Babo foi o sujeito menos triste que conheci. Se alguma vez se queixava da vida era para fazer uma brincadeira. Eu, que sempre me impacientei bastante comigo mesmo e outras pessoas puxadas a triste, explorava descaradamente seu bom-humor. Em nossos encontros fortuitos, fosse a que hora fosse, em qualquer lugar, antes de falar qualquer coisa, eu o agarrava pelo braço e pedia: “Mete lá o Rancho das flores”. Às vezes, ele alegava pressa ou a impropriedade do local, mas jamais conseguiu (ou quis de fato) escapar. Que havia eu de fazer? Ele dispunha em quantidade generosa o que me escasseava: alegria. Eu, desempregado da alegria, tinha que lhe dar essas “facadas” de bom humor.
Só uma vez o vi preocupado. Lamartine me telefonou e marcou um encontro comigo. Contou-me que na véspera tinha tomado uns uísques com Rubem Braga e uma linda moça americana chamada Maureen. A uma certa altura, buscando “musicar” o nome da americana, inventou ali na hora, para seu próprio espanto, um foxtrote de grande bossa. A jovem, é claro, entusiasmou-se com a composição que inspirara e lhe pediu que trouxesse o fox escrito no dia seguinte. Além do valor da própria homenagem, ela queria fazer fosquinhas com a música em um ex-namorado. Lamartine anotou o telefone dela e prometeu tudo de pedra e cal. Pois, o problema, me dizia ele consternado, era apenas o seguinte: ao acordar, lembrou-se logo do episódio e teve medo de não se lembrar da melodia. Tentou assoviá-la e o conseguiu, mas — que vergonha — o fox que pensava ter composto era, de cabo a rabo, uma música americana que fizera grande sucesso em 1928, por aí. E agora? Que iria a Maureen pensar dele? Quanto mais ele dramatizava, mais eu me ria. Pensando que eu não estava entendendo a gravidade do caso, começou a trautear o fox, a fim de que eu avaliasse melhor a identidade de seu crime. De repente, parou, bateu a mão na testa e exclamou: “Meu Deus, este fox também é um plágio descarado; isso é de uma sinfonia de Tchaikovsky”. E passou alegremente a cantarolar a sinfonia.
Mais um exemplo de seu bom humor. Uma vez, foi a uma repartição dos telégrafos tratar de um assunto qualquer. Enquanto esperava diante do balcão, viu que um funcionário da casa tirava um lápis do bolso e transmitia em pancadas de Morse, para um companheiro ao lado, a seguinte mensagem: “Feio e magro”. Lamartine, que já fora telegrafista, puxou também um lápis e transmitiu sobre o balcão a resposta: “Feio, magro e telegrafista”.
E ele mesmo me contou animadamente esta história: alguém que se dava o nome de Vera, e dizia ter 18 anos, começou a enviar-lhe cartas bem escritas e sérias, datadas de Boa Esperança. Impressionado com a inteligência de Vera, com seus argutos pensamentos sobre a vida, Lamartine foi ficando impressionado, a imaginação trabalhando, passando da curiosidade vaga a uma atenção quase obsessiva. Respondia às cartas, instigava a moça à discussão dos assuntos mais graves a fim de prová-la. As respostas vinham em estilo caprichado e anunciavam um espírito extremamente perspicaz e profundo para uma pessoa tão jovem.
Apesar de a missivista sempre dizer que o encontro pessoal era impossível, um dia ele não resistiu mais, meteu-se em um trem e foi a Boa Esperança. Recebido com todas as homenagens no clube recreativo local, tratou logo de tentar descobrir a identidade da moça. Nada, ninguém queria dizer nada. Riam estranhamente e não diziam coisa nenhuma. Disposto a não sair dali sem desvendar o segredo, pôs-se a namorar a mais balzaquiana e menos sedutora das moças presentes, dançou com ela, passou-lhe uma conversa em grande estilo, até que a jovem, compadecida e lisonjeada, confessou quem era Vera, a inteligente autora das cartas: o irmão dela.
Antes cair das nuvens que de um terceiro andar, dizia o Machado. Era a pura verdade, o puro anticlímax: o irmão da moça, professor de latim no ginásio, era o autor das bem-traçadas. O pior é que toda a cidade, sem exceção, sabia do acontecido e se divertia às custas dele; o professor chegava a ler em público no clube as cartas enternecidas de Lamartine, como também lia, para a gozação geral, as respostas que ia enviando ao enamorado.
Qualquer outro, se não chegasse a dizer uns bons palavrões, pelo menos ficaria arrasado com a grotesca frustração. Mas Lamartine Babo foi um mestre do bom-humor. “No trem, quando voltei, me disse, não me dei por achado e fiz aquele Serra da Boa Esperança que uma esperança encerra”... E, rindo-se de si mesmo, repetia em voz alta: “Bem feito, Lamartine, quem te mandou ser romântico”?
Esse era mesmo um bom sujeito.