Carlos Drummond de Andrade, Rio de Janeiro, 1963. Foto de Alécio de Andrade/ Arquivo familiar de CDA.
Por gentileza, arrumem um espacinho para mais uma cadeira na mesa do Portal, pois hoje recebemos um reforço há muito aguardado: Carlos Drummond de Andrade é o décimo quinto cronista da nossa escalação. Já na estreia, mais de 50 crônicas à disposição do leitor, além de uma farta linha cronológica e de um belo perfil assinado pelo professor e crítico literário Sérgio Alcides.
Nem todo mundo sabe que Drummond, nosso maior poeta, foi um cronista contumaz, com uma produção jornalística de cerca de seis mil textos espalhados sobretudo em jornais e revistas de Minas e do Rio. Foi ainda aos 18, saído de Itabira para Belo Horizonte, que bateu na porta do Diário de Minas e ofereceu seus serviços. Desde então, seguiu assinando crônicas, artigos e resenhas na imprensa, muitas vezes com pseudônimos, como Antônio Crispim, João Brandão ou... Gato Félix. Só em 1984, três anos antes de sua morte, o poeta interrompeu os mais de 60 anos de laudas contínuas.
E é justamente pelo fim que começamos esta apresentação. “Ciao” é a despedida de um cronista que nasceu “na velha Belo Horizonte dos anos 20” e que seguia, “com a graça de Deus e com ou sem assunto”, cometendo “suas croniquices”. Mas era chegada a hora de “pendurar as chuteiras”. Durante sua vida de cronista, “assistiu, sentado e escrevendo, ao desfile de 11 presidentes da República, mais ou menos eleitos”, “sem contar as altas patentes militares que se atribuíram esse título”. Viu a Segunda Guerra, “a industrialização do Brasil, os movimentos populares frustrados mas renascidos, os ismos de vanguarda que ambicionavam reformular para sempre o conceito universal de poesia”. Viu “a Lua visitada, as mulheres lutando a braço para serem entendidas pelos homens” e, é claro, “as pequenas alegrias do cotidiano, abertas a qualquer um, que são certamente as melhores”.
Assistiu a tudo isso “ora sorrindo ora zangado, pois a zanga tem seu lugar mesmo nos temperamentos mais aguados”. De tudo, procurou extrair “não uma lição, mas um traço que comovesse ou distraísse o leitor, fazendo-os sorrir, se não do acontecimento, pelo menos do próprio cronista, que às vezes se torna cronista do seu umbigo, ironizando-se a si mesmo antes que outros o façam”. Essa é a vantagem da crônica: “não obriga ao paletó-e-gravata do editorialista, forçado a definir uma posição correta diante dos grandes problemas”, nem “exige de quem a faz o nervosismo saltitante do repórter”, que apura fatos no calor do momento; “dispensa a especialização suada em economia, finanças, política nacional e internacional, esporte, religião e o mais que imaginar se possa”. Tudo que pedimos do cronista “é uma espécie de loucura mansa, que desenvolva determinado ponto de vista não ortodoxo e não trivial e desperte em nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo e a validação de espírito”. “Território livre da imaginação”, a crônica é “empenhada em circular entre os acontecimentos do dia, sem procurar influir neles”, nos poucos “minutos no café da manhã ou à espera do coletivo”.
Certa vez, durante o café, quando o poeta lia os jornais à cata de assunto, foi surpreendido por uma borboleta “de espécie comum, branca e pequena” que entrou pela janela. “Embora cordial, estava apressada” – como todas as borboletas –, escreveu em “A visita da borboleta”. Deu “uns voleios em torno da mesa” e retirou-se, “deixando a lembrança agradável de sua visita”. Findo o acontecimento quase mágico na vida de suas retinas tão fatigadas, o cronista voltou à leitura do jornal e se deparou com a notícia oportuna de que realizariam, dali a uns dias no bairro do Grajaú, uma “vigília ecológica em defesa das borboletas ameaçadas de extinção”. A visita daquela, portanto, “não fora gratuita” – tinha ido divulgar a iniciativa.
“O pessoal do Grajaú está certo”, ponderou o cronista. Nas borboletas está representado “um interesse global da vida, que se tece de infindáveis articulações entre elementos da natureza, ligando a existência do homem a um quadro onde tudo tem sua função e, portanto, sua explicação”. Quem vê “um ser desses bailando no espaço, há de sentir melhor a graça do dia e mais leve o peso da inflação”. Daí, o cronista seguiu “borboleteando entre assuntos vários”, como convém ao seu “ofício de juntar sílabas sobre o cotidiano”. Drummond foi mesmo um cronista do vasto mundo atento aos pequenos acontecimentos cotidianos. Não espanta que tenha escrito, no poema “Carta a Stalingrado” de A rosa do povo, que “A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais”.
Falando em bicho e já adiantando um pouco a pauta natalina, o cronista escreveu sobre outros dois, o boi e o burro. Presenças ilustres em qualquer presépio, há várias explicações para o que simbolizariam no ato de nascimento de Jesus. Em “O boi e o burro explicados”, disponível em áudio com a ótima leitura do embaixador Lauro Moreira, Drummond palpita sobre algumas delas: há quem diga que os animais são “antecipações das figuras humanas que cercaram Jesus nos últimos instantes de sua vida: o bom e o mau ladrão, crucificados juntamente com ele”. Outros, mais realisticamente, acham que “José levara consigo o burro e o boi, para que o primeiro servisse de montaria à Virgem”, e o segundo, vendido, custeasse despesas.
Nada disso. O mais provável é que “o boi, em sua placidez” e “o burro, em sua grave simplicidade” não tenham ido “ao estábulo para homenagear o Deus que nascia”. Eles é que “receberam a visita do casal e prestaram as humildes honras da casa ao Menino”, pois moravam lá. E exalando “seus bafos de tépida benevolência”, providenciaram calor e proteção ao recém-nascido. O primeiro calor, “o primeiro ato reverencial, o primeiro signo de adoração” não veio dos anjos, nem dos pastores, nem dos Reis Magos, e sim de “dois bichos que não tinham informação das Escrituras”. Por isso são sempre retratados em pé de igualdade a todos da cena, “como familiares e guardas de absoluta confiança”. Assim, “burro e boi explicam-se por si mesmos, na hora e vez”.
Ao redor do mundo, porém, eles nem sempre figuram no presépio: “se os russos colocam no lugar desse burro, que eles não conhecem, esbelta silhueta do cavalo, se os outros povos substituem o boi pelo búfalo, que lhes é mais familiar, se qualquer bicho da terra pode com dignidade assumir a responsabilidade sacra daqueles dois”, não faz mal, pois “o pensamento divino se manifesta de igual modo”. O recado é o mesmo: “a vida é um todo” e “nem indivíduos nem povos nem nações devem tentar dissociá-lo”. Em outras palavras, “vale a pena tentar a experiência do amor”.