16 out 2023
Guilherme Tauil
Hoje, o Portal da Crônica Brasileira recebe o reforço ilustre, ilustríssimo, de Machado de Assis, seu novo integrante. O escritor é o décimo sétimo cronista da casa e, naturalmente, dispensaria apresentações. Mas como sua produção na imprensa não é assim tão conhecida, preparamos algumas palavrinhas para acompanhar as 20 crônicas machadianas já disponíveis por aqui.
O leitor pode conhecer mais sobre a vida de Machado navegando pela farta cronologia preparada por Katya de Moraes. Além disso, um texto introdutório, assinado pelo jovem pesquisador Gabriel Chagas, levanta algumas questões importantes de sua trajetória literária, desde os primeiros versos até a glória nacional do “escritor mais brasileiro que jamais houve”,...29 set 2023
Guilherme Tauil
Durante quase toda sua trajetória pela imprensa, Rubem Braga anunciou a chegada das flores no fim de cada setembro. O nosso arauto da primavera saudava a estação à sua maneira, às vezes com a alegria discreta de quem redescobre a beleza da vida, às vezes contagiado pelo rompante da natureza, também ele desabrochando um pouco.
Mas nem todos os cronistas se emocionavam com os meses floridos. Em 1946, o sergipano Genolino Amado maldisse a estação em uma coluna meio azeda na revista O Cruzeiro. Para ele, o período não passava de uma sala de espera para o verão. Seria tolice, portanto, saudá-lo. Braga ficou chateado: “A coisa me atinge, pois tenho cantado a primavera todo ano, assim como as demais estações, conforme é uso...15 set 2023
Guilherme Tauil
“Coriza, cabeça inchada, olho vermelho, pele febril.” Esses eram os sintomas de uma gripe que Rachel de Queiroz pegou em 1957. Aos poucos, a dor foi se instalando pelos ossos do corpo, um a um. Depois correu “os dedos pelos músculos, repuxando, machucando”, até se acomodar “na barriga das pernas, nos rins e na nuca”. A moleza se generaliza, e para erguer um braço é preciso “apelar às suas reservas morais”. Erguer as pálpebras, talvez o movimento mais simples de todos, só “metendo o ombro e fazendo força”. É esse o retrato de uma Mulher com febre – na verdade, de todos nós.
A sensação do gripado é a de carregar um defunto dentro de si, e muitas vezes, na batalha que trava com a parte ainda viva do ser, ele...31 jul 2023
Guilherme Tauil
Domingo é dia de fazer observações “talvez não muito úteis, mas em todo caso honestas”, escreveu Rubem Braga. Por exemplo, que as casuarinas do parque estão crescendo e ficando belas. Coisas assim, sem importância prática. Nunca se deve esperar que algo de significativo aconteça, porque o “domingo não é um acontecimento, é um estado de seres e coisas”.
Um estado capaz de revelar muito. Veja só essa lojinha diante do cronista. Em dia de semana, tudo o que nela se vê é a “vitrina de mau gosto cheia de calçados e de enfeites vermelhos”. Às vezes “um sujeito na porta em mangas de camisa, às vezes uma senhora entrando” para comprar sapato. Ninguém, em dia útil, percebe o prédio velho que abriga a loja, muito menos...17 jul 2023
Guilherme Tauil
Pio era o nome de um pintinho que os filhos de Paulo Mendes Campos compraram na feira. Diferente de seus antecessores, o bichinho superou a sina da vida breve graças a uma vizinha que entendia “da sobrevivência de pinto de feira em apartamento”. Mesmo assim, é melhor avisar antes que A verdadeira história de Pio não é daquelas de final feliz. Já de pequeno, Pio “mostrou-se um pinto meio esquisito, achegado aos seres humanos e danado de andejo”. Neurótico, piava a todo tempo, “como se o enervasse a passagem das horas”.
Quando a família se mudou de casa, a ave “passou dois dias subindo e descendo a escada, piando, piando, entre as pernas dos carregadores”. Essa atitude demasiado humana fez com que seu prestígio aumentasse...30 jun 2023
Guilherme Tauil
Mexendo em papéis alheios, Maria Julieta Drummond de Andrade encontrou uma foto velha, datada de 1910, de uma mocinha vestida de branco. Ela posava ao lado de uma cadeira tipo Luís XV, onde sentava uma enorme boneca loura. Ao fundo, uma cortina de paisagem pintada e um pedaço de coluna, dessas greco-romanas que emprestavam às fotografias antigas “uma atmosfera de poesia atemporal”.
A primeira impressão da cronista foi achar a menina séria, metida naquele cenário todo. Depois, observando-a melhor, viu que ela estava “a ponto de achar graça”, como quem “disfarça o esboço de um sorriso” mas não se atreve a quebrar a solenidade do momento – com “o cabelinho preto” cuidadosamente aparado para a circunstância, dava...15 jun 2023
Guilherme Tauil
Stanislaw Ponte Preta voltava para casa sem nenhuma preocupação, “certo de que seria uma noite calma, dormida longamente”, como há muito não tinha. Ao descer do automóvel, porém, recebeu a notícia grave do porteiro: “A Dolores foi assassinada”. Sem acreditar no que ouvira, o cronista tocou para o apartamento de Dolores Duran, uma das mais queridas intérpretes da noite carioca.
Não podia ser verdade. Ninguém seria capaz de matá-la, tão alegre que era a Bochechinha. Ele a chamava assim porque costumava cumprimentá-la com um aperto carinhoso na face. Quando se viam de longe – durante uma apresentação, por exemplo –, era ela que se apertava de leve ao reconhecê-lo na plateia. Certa vez, ao retornar de uma longa turnê,...31 mai 2023
Guilherme Tauil
“Is this an elephant?”, indagou a professora de inglês segurando um objeto, com um “ar de quem propõe um grave problema”. A tendência imediata de Rubem Braga foi dizer não, mas como nunca é sábio deixar-se levar pelo primeiro impulso, achou melhor analisar o objeto com cuidado. Aquilo “não tinha nenhuma tromba visível”, tampouco as “quatro grossas patas” dos paquidermes, nem “o pequeno rabo que caracteriza o grande animal”. Não era, portanto, um elefante. “No, it’s not!”, respondeu com segurança. A Aula de inglês prosseguiu com um suspiro satisfeito da professora, que logo emendou outra pergunta: “Is it a book?”.
Essa era fácil. “Tenho vivido uma parte de minha vida no meio...15 mai 2023
Guilherme Tauil
“Cada flor/ com sua forma, sua cor, seu aroma,/ cada flor é um milagre”, escreveu Manuel Bandeira em “Preparação para a morte”. Depois de testemunhar o nascimento de um abacateiro, Maria Julieta Drummond de Andrade quis acrescentar um versinho ao poema: “O abacate é um milagre”. Como não dava, o jeito foi glosar em prosa o seu maravilhamento pela “condição mágica desse fruto”, mais especialmente pelo seu caroço.
No dicionário etimológico, descobriu que caroço provavelmente deriva de cor, cordis, coração: “sendo o núcleo da fruta, é sobretudo o seu coração, sua parte sensível e palpitante”. De outro modo, não se explicaria “que um simples caroço de abacate pudesse resumir tanto mistério, tanta beleza...17 abr 2023
Guilherme Tauil
Paulo Soledade foi um compositor conciso. Seu cancioneiro é modesto, com cerca de apenas 40 composições, mas abarca alguns clássicos incontestes da música brasileira. Além de parceiro de Tom Jobim, Vinicius de Moraes e, entre outros, Antônio Maria, Paulo foi próximo de toda a patota da crônica e circulava muito bem pelas noites cariocas – apesar de ter sido um boêmio moderado que bebia somente cerveja, amava a noite e nela se perdia com os amigos sempre que a ocasião se apresentava. José Carlos Oliveira, o nosso Carlinhos, traça um perfil breve do amigo na crônica “Assim nasce uma canção”.
Sua profissão era, na verdade, comandante da Panair. Foi o único da geração lendária dos anos 1950 a literalmente andar com a...30 mar 2023
Guilherme Tauil
De madrugada, recolhido em seu escritório, Drummond foi surpreendido por um Visitante noturno que, como todos os insetos, apareceu sobre a mesa “sem se fazer anunciar”. Era “uma coisinha insignificante, encolhida sobre o papel e ali disposta, aparentemente, a passar o resto de sua vida mínima”.
O poeta, que tinha “o hábito de ficar altas horas entre papéis e livros”, pensou em esmagá-lo. Chegou a mover a mão, mas se deteve – “não seria humano liquidar aquele bichinho só porque estava em lugar indevido”. Embora sua “ignorância em entomologia” não lhe permitisse saber se era um inseto nocivo, na dúvida, o melhor era deixar viver aquilo que sequer tinha nome para ele – o que pouco importava. Não quis “recorrer...15 mar 2023
Guilherme Tauil
“Às vezes me arrepio toda ao entrar em contato físico com bichos ou com a simples visão deles”, escreveu Clarice Lispector em “Bichos”, a primeira crônica de uma dobradinha filosófica sobre os animais. De seu modo peculiar de entender o mundo, Clarice tinha “certo medo e horror daquele ser vivo que não é humano e que tem os nossos mesmos instintos, embora mais livres e indomáveis”. Porque “um animal jamais substitui uma coisa por outra, jamais sublima como nós somos forçados a fazer”. E, ainda por cima, se move, independentemente, “por força mesmo dessa coisa sem nome que é a Vida”.
Esse horror se traduzia, na verdade, em fascínio, vontade de aprender com as espécies selvagens. Para o espanto de mães e pais...15 fev 2023
Guilherme Tauil
Correndo o risco de espantar o leitor que ensaia o samba o ano inteiro, hoje vamos falar de cronistas pouco chegados no Carnaval. Nem é preciso pedir licença para apresentar a turma que prefere o sossego, pois o Bloco do Sofá dispensa a abertura de alas. Para se filiar ao movimento, não é preciso ser, de fato, indiferente à festa – mas pode ser, também. Basta não se deixar contagiar pelo tamborim da avenida, ter certa indisposição preguiçosa, ser fiel a um desejo de conforto constante.
Carlos Drummond de Andrade era desses. Preferia Ficar em casa. Dizia isso desde 1934, quando publicou Brejo das almas, seu segundo livro de poemas. Um deles, espécie de lampejo lisérgico anticarnavalesco, abre assim: “Deus me abandonou/...31 jan 2023
Guilherme Tauil
Em 1916, no Rio de Janeiro, o sambista Donga cantou que, pelo telefone, o chefe da polícia mandava avisar que na Carioca tinha uma roleta para se jogar. Quinze anos depois, Carlos Drummond de Andrade registrou a chegada do telefone automático em Belo Horizonte, numa série de crônicas publicadas no Minas Gerais. Ao leitor de pouca idade, explico: houve um tempo em que as ligações eram mediadas por uma telefonista, sentada em sua cadeirinha na central telefônica, responsável por manualmente conectar duas linhas, num processo que poderia levar horas ou até mesmo o dia todo.
No dia 23 de setembro de 1931, os belo-horizontinos demitiram suas telefonistas e passaram a ligar diretamente uns para os outros com seus telefones de disco...16 jan 2023
Guilherme Tauil
Quinta passada, 12 de janeiro, o patrono do Portal fez aniversário. São 110 anos de Rubem Braga, que segue surpreendendo leitores de todas as gerações com a beleza de sua prosa lírica. O velho Braga, como ele próprio se chamava desde muito jovem, é mesmo o nome mais importante da nossa crônica. Além de ter sido o grande responsável por formatá-la nos moldes que conhecemos bem, foi uma espécie de sol a iluminar a obra de todos os seus colegas, emprestando um pouco de cor à paleta dos cronistas – sobretudo dos que vieram depois.
Foi o caso de Carlinhos Oliveira, 21 anos mais moço, que descobriu com Braga o significado de ser moderno. Antes disso, menino ainda, engatinhando no ofício e só com “as bibliotecas da província atrasadas... 2 jan 2023
Guilherme Tauil
Os pais pediram que o menino fosse dormir cedo, para que pudesse “acordar à hora da passagem do ano”. A julgar pela “insistência da recomendação”, o ano não passaria se o menino não se deitasse. O que seria, francamente, um problemão – e para o mundo todo. Se o ano não virasse, “tudo o que estava para acontecer a partir da meia-noite, bruscamente ficaria retido nas malas, nos pacotes, na escuridão”. Por respeito à humanidade, o garoto acatou. Quer dizer, mais ou menos – ficaria na cama de olhos fechados, igual quando brincava de morto, mas dormir mesmo não dormiria. Só estando acordado seria possível “devassar de vez o mistério da passagem do ano”.
Os adultos mentem muito, sabia. Até mesmo sua mãe, “que...15 dez 2022
Guilherme Tauil
Por gentileza, arrumem um espacinho para mais uma cadeira na mesa do Portal, pois hoje recebemos um reforço há muito aguardado: Carlos Drummond de Andrade é o décimo quinto cronista da nossa escalação. Já na estreia, mais de 50 crônicas à disposição do leitor, além de uma farta linha cronológica e de um belo perfil assinado pelo professor e crítico literário Sérgio Alcides.
Nem todo mundo sabe que Drummond, nosso maior poeta, foi um cronista contumaz, com uma produção jornalística de cerca de seis mil textos espalhados sobretudo em jornais e revistas de Minas e do Rio. Foi ainda aos 18, saído de Itabira para Belo Horizonte, que bateu na porta do Diário de Minas e ofereceu seus serviços. Desde então, seguiu assinando...