A vida própria das palavras

Flagrante de rua - placas, letreiros e cartazes, Cuiabá, Mato Grosso-MT, década de 1980. Foto de David Zingg/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Em 1905, durante uma conferência no antigo Salão Steinway, cujos pilares ainda estão de pé na avenida São João da capital paulista, o poeta Olavo Bilac decretou, a quem pudesse interessar, que as palavras tinham vida própria. De fato, elas vão e vêm como querem, e na boca do povo ganham sons, perdem letras e tomam caminhos insuspeitos. Às vezes, também são vítimas de reformas ortográficas, que lhes impõem certas intervenções pelas mãos nem sempre delicadas dos gramáticos. Como da última vez, Bilac, que também foi cronista, dá o gancho para falarmos de algumas crônicas dedicadas às palavras.

No Rio de Janeiro de 1969, Carlos Drummond de Andrade foi o único a notar que as pernas das moças tinham ficado um pouquinho de nada mais cobertas. Isso porque Aurélio Buarque de Holanda, pai de um dos nossos mais notáveis pai dos burros, tinha estabelecido, em seu novíssimo Vocabulário ortográfico brasileiro, que a grafia de minissaia agora era assim, com a consoante sobressalente, para a desolação do hífen aposentado. “As saias pareceram-me não só meio milímetro mais compridas, como também feitas de tecidos mais sedosos, mais doces ao tato”, escreveu o poeta em “Na mina das palavras”, porque um tracinho reto tinha sido substituído por um “s” saliente. Tanto pode a força de uma letra.

Sem corretor automático para socorrer, os escritores precisavam ter à mão obras de referência como aquela para consultar o estado atual da ortografia, “mais variável que o tempo”, de vocábulos como “açúcar”, “sossego”, “xícara”. Não é que o poeta tivesse dificuldades com o português, mas não fazia tanto tempo assim que a língua tinha deixado de reconhecer “assucar”, “socego” e “chicara”, imagine só.

Muitas décadas antes, na crônica “Exemplo a imitar”, Lima Barreto deu seu palpite sobre um decreto baixado nas capitais de São Paulo e Minas Gerais, onde toda placa passara a ser obrigatoriamente “redigida em língua vernácula”. Os jornais cariocas fizeram campanha para que a medida fosse implementada no Rio com mais rigor, prevendo multas para quem profanasse o idioma com erros gramaticais. Lima até gostou da ideia, mas duvidou que os agentes oficiais pudessem fiscalizar “tão indisciplinada” língua.

As placas da Light no bairro da Zona Sul, por exemplo, grafavam “Larangeiras”, embora muita gente adotasse “Laranjeiras”. Com quem estava a razão? E se um humilde ferrador anunciasse seus serviços com uma plaquinha em que se lia “Ferra-se burros”? Multa para o pobre coitado, por um deslize bobo desses? Para dar conta dessas questões, seria preciso chamar uma comissão de gramáticos, “e esta é uma espécie de gente que não se entende”. Não se entende nem se leva muito em conta, pois ainda que os gramáticos protestassem contra o “crasso galicismo” da palavra “confecção”, por exemplo, era só o que se lia nas placas de todas as casas de modas, de todas as costureiras. Seria caso de multa? Nunca saberemos, já que a lei não saiu do papel.

Falando em estrangeirismos, Otto Lara Resende tratou do assunto em mais de uma crônica. Em “Escanção e luas”, o cronista dividiu seu conhecimento enciclopédico com uma gente entendida de vinho, mas nem tanto de português. Por conta do 7° Concurso Mundial de Sommeliers, realizado no Rio naquele ano de 1992, os chegados numa taça andavam repetindo a bravata de que a palavra francesa sommelier não tinha tradução na nossa língua. “Em bom português, é escanção”, ensinou Otto. A etimologia, para alguns, remonta ao frâncico; para outros, vem do gótico, e “por aí se vê como é antiga a arte de beber”. Mas como coube à França ser a pátria do vinho, o termo sommelier se universalizou. No Brasil, “escanção” não pegou. Com exceção de Vinicius de Moraes, que a usou no poema “Balada de Pedro Nava” com sentido de “garçom”, ninguém tem coragem de chamar o atendente assim, embora a categoria profissional costume aceitar os mais diversos e esdrúxulos vocativos.

Em “Palavras inventadas”, Otto conta de outras tentativas, nem sempre felizes, de aportuguesar estrangeirismos. Lembrou do professor Castro Lopes, inveterado combatente dos “partidários dos barbarismos”, que pegavam do estrangeiro palavras estranhas ao português. O termo chauffeur, por exemplo, que chegou de carona com o automóvel no Brasil. Patriota “que nem um Policarpo Quaresma avant la lettre”, o professor propôs o termo “cinesíforo”, que em grego quer dizer “aquele que produz movimento”. Não pegou. Acabamos ficando com “motorista”, um “brasileirismo que se deve a Medeiros e Albuquerque”. Mas a batalha lexical do professor Castro Lopes não foi em vão: devemos a ele a palavra “cardápio”, que bate de frente com o “menu” gringo.

A propósito, convém lembrar de um gracejo que Fernando Sabino contou do poeta e psicanalista Hélio Pellegrino, íntimo o suficiente das palavras para tomar certas liberdades com elas. Gostava de dizer, por exemplo, que a cerveja estava “môrna”, e não “mórna”, pois o chapeuzinho do acento circunflexo esquentava mais que o tracinho do agudo. Errado não estava. Mas isso é conversa para outra hora, assim com a vogal aberta mesmo.