"Novo dicionário da língua portuguesa", Inácio Borba, São Paulo-SP, 1974. Foto de Stefânia Bril/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Foi Olavo Bilac que, em parnasianíssimo soneto, tratou a língua portuguesa por “última flor do Lácio, inculta e bela”, referindo-se ao fato de que o nosso idioma foi o último a se desprender do latim vulgar, isto é, aquele praticado por gente como a gente, na região do Lácio, onde outrora retumbaram hinos do império romano. Por isso, inculta. Bela, é claro, não carece de explicação.
Embora ao falante de português seja muito justo o sentimento de gratidão por não ter sido alfabetizado em alemão ou em húngaro, é inegável que o adjetivo “complicada”, ou ao menos “complicadinha”, cairia bem no poema de Bilac dedicado à língua materna. Nossos tropeços são muitos, as dúvidas incontáveis, e vira e mexe se tornam assunto dos cronistas – que, pelo menos uma vez por semana, estavam à mercê dos becos obscuros do idioma.
Em uma crônica com certa pinta de artigo, de nome “Ninguém sabe crasear, mas ler todo mundo lê”, Otto Lara Resende embarcou na discussão vigente sobre a crase, talvez uma das maiores dificuldades do português. O assunto estava em voga porque gramáticos e acadêmicos começavam a cozinhar o tal Acordo Ortográfico, que entraria em vigor para nós apenas quase duas décadas depois. Alguns entusiastas da simplificação, talvez num ímpeto anarcogramatical, propuseram sumir com a crase como fizeram com o trema. Otto era contra: “Se todo mundo soubesse crasear, ou se a crase fosse abolida, é possível que tivesse passado a vida desempregado”, disse. Foi às custas dela que fez sua carreira. O mesmo valia para seu pai, Antônio Lara Resende, que criou a numerosa prole de 20 filhos como professor de português e latim, “em boa parte graças à crase”.
Anos antes, o poeta Ferreira Gullar tinha publicado no Diário de Notícias, dirigido por Otto, uma série de aforismos sobre a contração, formulando “as novas tábuas de lei nessa matéria”. O primeiro mandamento era “A crase não foi feita para humilhar ninguém”. A frase fez sucesso e, como acontece na internet, se espalhou sem a marca de paternidade. Em contextos variados, foi atribuída a Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, ao próprio Otto e a Rubem Braga, que tentou desfazer a confusão e publicou uma crônica dando os devidos créditos a Gullar. Pelo visto, o esclarecimento funcionou, já que em 2005, quando um deputado propôs um extravagante projeto que extinguia a crase, sua equipe procurou o poeta pedindo autorização para o uso da frase. A resposta que recebeu, dizem, não foi nada poética.
O deputado em questão, cujo nome é melhor omitir, bem poderia ter sido a inspiração de Fernando Sabino para a personagem da crônica “Eloquência singular”, embatucada em dificuldades linguísticas logo no início de seu discurso solene: “Senhor presidente: não sou daqueles que...”, que o quê? O verbo vai para o singular ou para o plural? Achava que era o plural, “no entanto, podia perfeitamente ser o singular”.
No plural soava melhor, “que recusam”. Mas e se fosse essa mais uma armadilha gramatical? Seria “que recusa”? Na dúvida, resolveu ganhar tempo: “... embora perfeitamente cônscio das minhas altas responsabilidades, como representante do povo nesta Casa, não sou...”, e seguiu enrolando, certo de que uma inspiração súbita o ajudaria a atravessar aquela traiçoeira pinguela gramatical: “... daqueles que, em momentos de extrema gravidade, como este que o Brasil atravessa...”, que recusa ou que recusam? Incapaz de acertar a concordância, seguia intercalando orações sem sentido e rebobinando a fita, o suor já pingando da testa, até que recebeu o aviso de tempo esgotado. “Em suma: não sou daqueles. Tenho dito”, concluiu, e foi aplaudido com euforia.
Certa vez, numa época em que vendedores de flores ofereciam suas pétalas em mesas de bares e restaurantes, Antônio Maria viu um senhor gordo, de ar próspero, pedir ao florista que escolhesse 12 de suas mais belas rosas. Queria amarelas, não tinha, aceitou as vermelhas e, depois de cheirar uma por uma, as embrulhou com uma folha de papel transparente. Puxou do bolso um cartãozinho e se escondeu para escrever a dedicatória em silêncio, como consta em “O destino implacável das flores”.
“Está sentado, de caneta em punho e olhar perdido”, observa o cronista. À espera da frase poética, da inspiração arrebatadora, ele morde a unha do indicador esquerdo. De repente, “seus olhos se iluminam, os lábios se entreabrem, num sorriso enlevado”. O homem desata a escrever, mas logo para e, criterioso, rasga o bilhete. Pega um novo pedaço de papel e retoma a árdua tarefa de calígrafo. Ele levanta os olhos, balança a caneta no ar, olha a prateleira de flores, olha o balconista e depois olha para Maria, com alegria por ter reconhecido o famoso escritor.
Com a certeza de que seria abordado, Antônio Maria viu o senhor caminhar em sua direção, empunhando caneta e bilhete, com o sorriso “sem graça de quem precisa, mas odeia precisar”. Ele pergunta ao cronista se ele é mesmo quem pensava ser. “Respondo-lhe que sim e penso em quanto gostaria de não ser”, escreve Maria. Então, o homem se aproxima e, bem baixinho, faz seu pedido de socorro: “Como é mesmo que se escreve ‘exímia’?”. “Com ‘x’ mesmo”, explica o escritor. O sujeito apaixonado, um pouco espantado com a resposta, sente necessidade de se justificar: “São para uma bailarina”.
Sorrindo, Maria foi embora para casa, pensando que em algumas horas a moça “estaria recebendo mais 12 botões de rosas, com um cartão de ponta virada, onde leria sem muitas emoções: ‘À exímia bailarina, o seu mais ardoroso admirador’”.