Carroça do padeiro, avenida Angélica, Higienópolis, São Paulo-SP, cerca de 1940/ Foto de Hildegard Rosenthal/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Em setembro de 1951, Rubem Braga tirou dois meses para passear pela Itália. Não era a primeira vez que se aventurava por lá: cerca de sete anos antes, tinha sido correspondente durante a Segunda Guerra ao lado da Força Expedicionária Brasileira, e das trincheiras escreveu seus relatos sobre os conflitos e os pracinhas. Agora, longe de bombas e cobras com cigarros na boca, o cronista podia escrever sobre as coisas belas da vida – porque estava de férias, mas sua coluna no Correio da Manhã ainda precisava ser preenchida diariamente.
Em uma crônica sem nome que não entrou em livro algum, o escritor testemunhou a chegada da chuva italiana, há muitos meses sem molhar ninguém, do alto de um terraço em Capri, a mais bela das ilhas acidentadas do Golfo de Nápoles. Era “o primeiro temporal da estação” e veio “do norte, enrolado em nuvens negras, avançou pela baía, envolveu o Vesúvio e organizou sobre as águas ainda azuis uma farra espetacular de trovoadas e relâmpagos”. De longe, o vulcão adormecido parecia estar em chamas enquanto Nápoles se afundava em escuridão. A tempestade foi avançando, engoliu Sorrento e se aproximou da ilha “com uma violência de terremoto do primeiro século cristão”. E então despejou “uma água torrencial, gorda, feroz, uma chuva amazônica”.
É bem provável que Braga, estudioso dos ventos e conhecedor de alísios e lestadas, tenha sido o único daquela multidão de turistas a admirar o espetáculo pluvial – todos os outros, tanto os “efebos suecos” quanto a “comitiva uruguaia”, dispararam em busca de refúgio, ocupando os cafés e as pizzerias da praça Umberto Primo. Com ar desolado, as lojistas recolhiam às pressas os cinzeiros e toda a “bugiganga inumerável” que a chuva engoliria com indiferença, enquanto no céu trovoava “um trovão poderoso e grosso” que era “o próprio ronco de Deus”.
A chuva persistiu, sem trégua. O comércio ficou triste e os turistas murcharam, mas na manhã seguinte uma vendedora de uvas entregou um cesto com muita alegria para Braga: “A gente da lavoura abençoa essa chuva e as donas de casa ouvem, alegres, a água correr pelos tetos abobadados”, enchendo as cisternas. Na ilha de Capri, as casas não tinham água; era preciso recolher a que caísse do céu. “Por isso, nós louvamos a chuva que choveu dois dias”, escreveu o cronista, comovido como se fosse um daqueles “rudes camponeses” de vida insular.
Anos depois, em outro setembro, o de 1974, José Carlos Oliveira também viu chegar uma chuva inesperada. O inverno no Rio de Janeiro “vinha vindo indolente”, já com ares primaveris, quando despertou certa manhã decidido a esticar mais um pouco o seu “tempo malbaratado”, compelindo a primavera “a esperar sua vez no lugar que de direito lhe pertence na ronda das estações”. E então uma chuvarada, “com todo o seu repertório”, desabou triste sobre a cidade. Trouxe junto um ventinho frio e uma bruma que borrou a vista do Pão de Açúcar, “desmanchado como um desenho feito a giz no quadro-negro”.
Impacientes “em suas roupas de lã e flanela que cheiram a naftalina”, os cariocas procuram seguir com a vida nessas condições adversas, se escorando nas marquises e desviando de guarda-chuvas alheios, mas não dá – “a cidade foi feita para o sol”. Sem sol, “não se pode fazer nada com alegria” no Rio de Janeiro, escreveu o cronista em “Chuva e solidão”.
Em dias assim, Carlinhos gostava de andar de táxi ao longo da avenida Atlântica e ver o mar, à procura de, quem sabe, alguma inspiração esquecida. Foi quando reparou “um novo tipo de solidão” surgindo na Zona Sul: de manhã bem cedo, moças e rapazes caminhavam “em passo lento, absortos, ou sentados, em divagação diante da arrebentação”. Isolados e entregues a si mesmos, não conversavam com ninguém. Ficavam, apenas. Certamente eram jovens que viviam em “apartamentos congestionados pela própria família, cercados de mil barulhos, assediados por solicitações mesquinhas”. Por isso iam para a praia em dias feios, em busca de silêncio, meditação, solidão. “Não deixa de ser inquietante”, escreveu o cronista num dia chuvoso, “a constatação de que vivemos numa cidade na qual até mesmo a solidão tem que ser inventada…”.
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