Fonte: Jornal do Brasil, de 11/09/1974.

1. Do lado de cá desta janela panorâmica de vidro em finas esquadrias de aço, observo a paisagem. O inverno que vinha vindo indolente, dando-se ares primaveris, em setembro despertou disposto a recuperar o tempo malbaratado. Violentamente empurrada, a primavera viu-se compelida a esperar sua vez no lugar que de direito lhe pertence na ronda das estações. E a chuva, com todo o seu repertório, inaugurou o seu triste espetáculo, caindo aos borbotões, ou pingando de um céu de zinco furado em toda parte, ou estiando só para tomar fôlego — um entreato no qual ocupam a cena os seus dois prestidigitadores: o ventinho frio, que varre enviezado as ruas e resfria os narizes, e a bruma que fez desaparecer o bondinho do Pão de Açúcar, desmanchado como um desenho feito a giz no quadro-negro.

As multidões se atropelam nas calçadas, disputando contra guarda-chuvas abertos a proteção das marquises; os sapatos apodrecem nas poças d’água; impacientes em suas roupas de lã e flanela que cheiram a naftalina, os cariocas procuram continuar vivendo nessas condições adversas — mas a cidade foi feita para o sol, e todos os negócios vão dar na opinião unânime de que num tempo assim não se pode fazer nada com alegria. Lá vão eles em todas as direções, os cariocas — esses chatos sem galochas...

Os técnicos do Juizado de Menores acreditam que com a volta dos dias ensolarados a delinquência juvenil tenderá a agravar-se, por causa das festas de fim de ano. Quer dizer, estão olhando para o futuro quando o presente está aí mesmo, para quem quiser ver: os pivetes desapareceram, sim, mas por causa da chuva. Eles estão feito bichos enjaulados, naqueles barracos gelados que o lamaçal sitiou. Foram treinados para agir à luz do dia tropical, quando se diluem nos aglomerados humanos, nos quais provocam a ágil e rapidíssima comoção do pequeno furto. Debaixo de chuva, suas roupas ficam andrajosas e eles se tornam visíveis, da mesma forma com que os mendigos se mostram, queiramos nós ou não. O pivete em setembro, encharcado e murcho, tem cara de ladrão: cada qual, diante dele, protege instintivamente sua carteira de dinheiro.

2. Antes de me perder nas tarefas do dia a dia, em cada manhã dessas de chuva, faço questão de ver como anda o velho mar. Assim, rolo de táxi ao longo da avenida Atlântica. E por isso anotei o aparecimento de um novo tipo de solidão na Zona Sul. São moças e rapazes que vestem roupas modernas, que se parecem com universitários (o que provavelmente são) e que estão na areia já às oito horas da manhã, caminhando em passo lento, absortos, ou sentados, em divagação diante da arrebentação. Não em grupos, nem mesmo dois a dois: cada um isolado, entregue a si mesmo. Quem passa de automóvel é que relaciona uns com os outros.

Com quem sonham esses jovens? Qual o solilóquio que ruminam? Reparei que não trazem qualquer apetrecho hippie e nem a prancheta com as matérias que devem ser estudadas. Moram naturalmente nesses quarteirões de Copacabana, plenos de conflitos que quase nunca aparecem diante da coletividade. Em seus apartamentos congestionados pela própria família, cercados de mil barulhos, assediados por solicitações mesquinhas, eles não têm aquele cantinho aconchegante onde se refugiam os apreciadores da meditação. Por conseguinte, vão passear na praia, seguros de que lá não há ninguém. Os dias chuvosos são o cantinho aconchegante deles. Não deixa de ser inquietante a constatação de que vivemos numa cidade na qual até mesmo a solidão tem que ser inventada... 

jose-carlos-oliveira