6 out 1951

Há muitos, muitos meses não chovia...

Há muitos, muitos meses não chovia. O deus dos turistas desenrolava, incansável, sobre esta ilha colorida, a graça dourada do sol e o manto puro das noites azuis.

Do alto de um terraço vi chegar o primeiro temporal da estação. Veio do norte, enrolado em nuvens negras, avançou pela baía, envolveu o Vesúvio e organizou sobre as águas ainda azuis uma farra espetacular de trovoadas e relâmpagos. Parecia que o Vesúvio estava em chamas e que Nápoles se afundara na escuridão; depois Sorrento sumiu; e o temporal avançou para nossa ilha com uma violência de terremoto do primeiro século cristão. Então caiu uma água torrencial, gorda, feroz, uma chuva amazônica, uma tempestade do exército do Pará.

1.500 turistas, na incrível piazza Umberto Primo, vestidos de todas as roupas de todas as cores, olhavam, assombrados. 500 pernas nuas em shorts vermelhos e amarelos, 900 lenços e blusas, 3.000 sandálias, 800 calças de veludo e mais os chapéus de palha com flores, e mais as jaquetas dos efebos suecos e os óculos da comitiva uruguaia, tudo disparou para dentro dos cafés, tudo gritou em 200 línguas, tudo se afundou nas pizzerias dos becos. As ruas eram torrentes desencadeadas; as moças das lojas recolhiam às pressas os cartões postais, os cinzeiros e colares coloridos, toda a bugiganga inumerável espalhada pela rua, com um ar desolado. E relampejava, e trovoava um trovão poderoso e grosso, um trovão medonho e gordo como de tarde antigamente junto da grande pedra, na fazenda do Frade, em Cachoeiro; um trovão que era o próprio ronco de Deus, ou de S. Pedro, zangado, arrastando os enormes armários negros do céu.

Ainda chove; o comércio está triste, os turistas debandam, mas a rapariga morena que veio me trazer um cesto de uvas hoje pela manhã está contente. A gente da lavoura abençoa essa chuva e as donas de casa ouvem, alegres, a água correr pelos tetos abobadados, descer pelas calhas, encher bem as cisternas.

E ainda há, no Rio, uns rapazes arquitetos que falam em arquitetura funcional! Os rudes camponeses que fazem essas estranhas casas orientais de Capri são mais sábios. A ilha, como o Rio de Janeiro, não tem água. Toda casa recolhe, por isso, a água que vem do céu bater em seus terraços brancos. Por isso, nós louvamos a chuva que choveu dois dias. Por isso nós louvamos o sol que nesta manhã brilha sobre os grandes cestos que as mulheres passam carregando na cabeça; são cestos de uvas, verdes e roxas: são cestos de peixe agulha, azuis e cor de prata.

rubem-braga
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