Rua Primeiro de Março, Rio de Janeiro-RJ, cerca de 1890. Foto de Marc Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Você já deve ter visto que o homenageado da próxima Flip, em sua 22ª edição, será João do Rio. Pela primeira vez a Festa Literária Internacional de Paraty põe um cronista no centro do palco. Embora vários outros patronos tenham praticado a crônica, nenhum esteve tão próximo do gênero como o atual – é possível falar de Clarice Lispector sem mencionar suas laudas de jornal, mas não há conversa sobre João que deixe suas crônicas de lado.
João do Rio, na verdade, era só um dos muitos pseudônimos com que Paulo Barreto assinou seus textos na imprensa carioca dos primórdios do século XX. E a crônica, só um dos muitos gêneros exercidos por este profícuo escriba que morreu cedo, antes de completar 40, mas deu conta de preencher nada menos que 25 livros com ensaios, contos, peças de teatro, romances, crônicas e reportagens. Desse mundaréu de letras, suas produções de maior destaque e relevância são, justamente, as duas últimas, as mais efêmeras: a crônica e a reportagem. Ao serem misturados pela pena inventiva de João do Rio, esses gêneros ganharam feições modernas, bem mais próximas do que conhecemos hoje. Ele levou ironia e humor aos relatos jornalísticos, trouxe um pouco de ficção para a realidade e injetou certo senso investigativo na crônica, o que a aproximou da vida cotidiana da cidade.
Naqueles primeiros anos de 1900, quando jornalista era basicamente um receptor de notícias plantado nos escritórios, João do Rio foi às ruas e se embrenhou pelo Rio de Janeiro, que sonhava em ser Paris e fervilhava com obras e andaimes. A marretadas e dinamite, a cidade abria espaço para seus novos símbolos de progresso e civilidade, mas deixava de fora de seu planejamento urbano a população mais pobre – a abertura da Avenida Central, por exemplo, levou abaixo quase 600 prédios antigos, entre cortiços e alojamentos populares. Toda essa gente desamparada começou a subir os morros para improvisar suas moradias, e surgiram assim as primeiras favelas, grafadas ainda em maiúscula, como nome próprio, em referência àquela planta descrita por Euclides da Cunha em Os sertões.
Essa história você já conhece, mas para os leitores da imprensa carioca, tudo era novidade, e foi nas colunas de João do Rio que tiveram contato com aquela realidade cruel. O cronista não só relatava o fenômeno como dava voz aos marginalizados, reproduzindo seus diálogos com todas as marcas próprias da oralidade. Dândi e excêntrico, nosso repórter vestia-se de cartola, fraque e monóculo, frequentava os teatros e os salões da grã-finagem, mas nunca deixou de estar ao lado dos pobres, dos trabalhadores, e de se interessar com sinceridade pela vida real dos excluídos. Foi o nosso mais essencial flâneur.
Veja, por exemplo, a empatia com que retrata a labuta dos violeiros e flautistas em busca de “moedas da coleta” em “Músicos ambulantes”. Ou a atenção que dedica, em “A pintura das ruas”, aos pintores quase anônimos dos quadros que transformavam botequins e cafés em “catedrais dos grandes fatos”. Em “Os trabalhadores da estiva”, o cronista embarca num bote junto com os operários do cais, de mãos degeneradas pelo trabalho, “as falanges recurvas e a palma calosa e partida”, para acompanhar sua jornada profissional. E em “Velhos cocheiros”, reproduz uma longa conversa com os mais antigos motoristas do Rio que, mesmo às custas da própria saúde, corroída “como a ferrugem estraga o aço mais fino”, não puderam juntar fortuna em décadas de ofício.
Outro grande mérito de João do Rio foi ter sido um jornalista de faro extremamente apurado. Chega a espantar sua habilidade de compreender completamente, em primeiríssima hora, algumas novidades do momento. Em “Os sports – O foot-ball”, ele testemunha a construção do estádio do Fluminense, em 1905, quando futebol era ainda um mero bate-bola de ingleses, e identifica uma definitiva mudança social em andamento: os moços todos estavam se interessando pelo esporte e já trocavam os remos pelos goals e shoots do futebol, pronto “para absorver agora todas as atenções”.
Alguns anos depois, em 1916, o cronista volta ao assunto e aponta, em “Hora de foot-ball”, a importância do Flamengo na “glorificação do exercício físico” que proliferava na cidade. Antes da popularização do esporte, atividade física era algo extravagante – “as mães punham as mãos na cabeça” quando seu filho arranjava um ferro para puxar.
Dar notícia da construção de um estádio qualquer um dava, mas identificar com clareza que algo maior e definitivo estava em andamento, que futebol era coisa séria, isso é com João do Rio. Veja outro delicioso exemplo, em “Clic-clac! O fotógrafo”, sobre como a recente inclusão de retratos nos jornais ilustrados despertou na gente uma verdadeira obsessão por fotografias. Isso muito, muito antes das selfies e do Instagram.
Quem já foi a Paraty, sabe bem da dificuldade que é caminhar por aquelas pedras do centro histórico. Vai ser difícil flanar com João do Rio por lá. Mas com certeza valerá a pena.
Nota do editor: Para mais João do Rio, não deixe de ler “João do Rio (mas não só)”, ótimo texto de Humberto Werneck publicado quando o cronista estreou por aqui.