A fúria materna de dona Rosalina

Portão de ferro da entrada da Pensão Hospedagem Londrina,  Rua do Senado, Centro, Rio de Janeiro-RJ, 1980. Foto de Rossini Peres/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Não foi em homenagem ao dia das mães que Rubem Braga publicou, em março de 1968, uma trinca de crônicas sobre um entrevero envolvendo dona Rosalina, a proprietária de uma pensão no Catete, e suas duas filhas. Mas a data nos serve de gancho para rememorar a parte um, a parte dois e a parte três da altercação materna na pensão, onde Braga se hospedou durante alguns meses. Era um sobrado que ficava na rua Correia Dutra, quase na esquina com a Bento Lisboa, e já não existe mais. Graciliano Ramos, chamado sempre de Brasiliano pela dona do estabelecimento, também morou lá com sua família. Foi no quartinho dos fundos, aliás, que escreveu Vidas secas. Mas Graciliano é assunto para depois. Fiquemos com as moças.

As duas irmãs, de nome Marina e Dorinha, moravam com a mãe, que exercia, como já sabemos, as “laboriosas funções de dona de pensão”. O que não é pouca coisa – uma dona de pensão no Catete seria capaz de desempenhar, sem prejuízo algum, o “cargo de ministro da guerra da Turquia”. Como não se deve falar muito da mãe dos outros, Braga se limitou a dizer que Rosalina estava sempre ocupada, muito ocupada. Enquanto as mocinhas, de olhos azuis e cabelos dourados, viviam cantarolando feito “dois excitantes e leves canários belgas a saltitar em feio e escuro viveiro”.

Sabe-se, também, que “a tendência das moças detentoras de olhos azuis” é ver a vida toda azul, e que a dos canários é voar. A pensão de dona Rosalina não poderia segurá-las para sempre, portanto. Até porque mesmo sobre os casarões do Catete “o céu às vezes é azul, e o sol acontece ser louro”. Certa noite, as moças chegaram em casa um pouco alteradas, alegrinhas, promiscuamente tontas. Pouquíssimo provável que algo de grave pudesse ter acontecido, “mas o coração das mães é aflito e severo”, e naquela noite nenhum hóspede pôde dormir. Houve “um relativo escândalo e muitas imprecações”.

No dia seguinte, Marina falava com voz doce ao telefone. A mãe se aproximou por trás, silenciosa, e ouviu o que parecia ser uma proposta indecorosa para driblar a “cretinice da velha”: “Olha, nós hoje vamos ao dentista às cinco horas...”. Dona Rosalina se enfureceu com o adjetivo que lhe coube, e “a conversa telefônica foi interrompida da maneira pela qual um elefante interromperia a palestra amorosa de dois colibris na relva”. Aos berros, a “velha” vociferava contra aquela falta de vergonha quando Dorinha apareceu no corredor e foi logo engolida pelo turbilhão materno. De nada serviu oferecerem resistência: em poucos minutos, debaixo de tapas, pontapés e palavras “gritadas em tão puro e rude vernáculo”, as moças foram expulsas de casa. Deu tempo só de arrumarem uma malinha, aos prantos.

A “intensa fuzilaria de raiva maternal” foi “das coisas mais violentas que já disseram em público neste país”, escreveu Braga. A ponto de esvaziar o café da esquina e muitos carros pararem, curiosos. Uma porção de homens se aproximou para consolar as mocinhas que, “baixando as louras cabeças”, choravam humildemente. O cavalheirismo do Catete “se manifestou naquele instante de maneira esplendente quando a senhora Rosalina deu por encerrado, com um ríspido palavrão, o seu comício”. O primeiro cavalheiro a se aproximar ofereceu dois quartos em sua pensão, na rua paralela, com uma quinzena de gratuidade. O segundo propôs chamar um táxi para levá-las ao seu apartamento, onde poderiam descansar em paz. Então, de todos os lados, “apareceram os mais bondosos homens”, de todas as idades e profissões, “fazendo os mais tocantes oferecimentos” às jovens derrotadas.

Um estudante que morava na própria pensão de dona Rosalina e “que havia três meses não podia pagar o quarto”, ofereceu levar as duas para São Paulo, “onde pretendia possuir um palacete”. Para cobrir a oferta, outro universitário que vivia à base de café com leite propôs conduzi-las para o Uruguai – naturalmente, por ser um rapaz pobre com um inevitável complexo de inferioridade, “não tinha coragem de pensar em país maior ou mais distante” quando pensava no estrangeiro.

As propostas se acumulavam quando um caixeiro disse que elas poderiam ir morar com sua prima, em Botafogo. A brilhante ideia “de oferecer uma proteção feminina” desbancou todas as outras ofertas. Aí choveram proposições de anfitriãs mulheres, de todos os níveis de parentesco. Um bancário intrépido, na esperança de desbancar a concorrência, ofereceu logo três mães, à escolha das mocinhas. Em poucos minutos, as infelizes tinham à disposição “15 primas, 23 irmãs solteiras, 4 tias muito religiosas, 41 irmãs casadas e 83 mães”. Trêmulas e nervosas, elas hesitavam, evitando as palavras ternas e a bondade cristã daqueles homens cheios de dedos e intenções.

Subitamente, quando os machos apertavam o cerco, dona Rosalina irrompeu de novo escada abaixo e abriu caminho naquela massa compacta de testosterona. Agarrou as meninas pelos braços e ordenou que entrassem imediatamente: “Já para dentro, suas desavergonhadas!”. E é por isso que se diz que não há nada neste mundo como o coração de mãe.