Ora, aconteceu que uma noite, ou, mais propriamente, uma madrugada, a mãe das moças de olhos azuis achou que aquilo era demais. Cá estou prevendo o leitor a perguntar que “aquilo” é esse, que era demais. Explicarei que Marina e Dorinha haviam chegado em casa um pouco tontas, em alegre e promíscua baratinha. Certamente nada acontecera de excessivamente grave – mas o coração das mães é aflito e severo. Aquela noite nenhum hóspede dormiu: houve um relativo escândalo e muitas imprecações.
No dia seguinte pela manhã aconteceu que Marina estava falando ao telefone com voz muito doce e dona Rosalina (a mãe) chegou devagarinho por detrás e ouviu tropos que tais: “Pois é... a velha é muito cacete. Não, não liga a isso não. É cretinice da velha, mas a gente tapeia. Olha, nós hoje vamos ao dentista às cinco horas. É...”
“A velha...” Essa expressão mal azada foi o início da tormenta. A conversa telefônica foi interrompida da maneira pela qual um elefante interromperia a palestra amorosa de dois colibris na relva. Verdades muito duras foram proferidas em voz muito alta. A “velha” vociferava que aquilo era uma vergonha e preferia matar aquelas duas pestes a continuar aquele absurdo. “Maldita hora – exclamou – em que teu pai foi-se embora.” Assim estavam as coisas quando Dorinha apareceu no corredor – e foi colhida ou colidida em cheio pela tormenta. Houve ligeira reação partida de Marina, assim articulada: “E a senhora também! Pensa que estou disposta a viver ouvindo desaforos? A senhora precisa deixar de ser...”
Depois do verbo “ser” veio uma palavra que elevou dona Rosalina ao êxtase da fúria. As moças foram empolgadas em um redemoinho de tapas e pontapés escada abaixo, ao mesmo tempo em que dona Rosalina berrava: “Fora! Para fora daqui, todas duas!”
(“Todas duas” é um galicismo, conforme algum tempo depois observou um leitor da Gramática Expositiva Superior de Eduardo Carlos Pereira, residente naquela pensão, em palestra com alguns amigos.)
Outras palavras foram gritadas em tão puro e rude vernáculo que tentarei traduzi-las assim: “Passem já! Vão fazer isso assim, vão para o diabo que as carregue, suas isso assim! Não ponham mais os pés em minha casa!”
(O leitor inteligente substituirá as expressões “isso assim assim” pelos termos convenientes; a leitora inteligente não deve substituir coisa alguma para não ficar com vergonha.)
As moças desceram até o quarto sob intensa fuzilaria de raiva maternal, arrumaram chorando e tremendo uma valise e se viram empurradas até a porta da rua. Nessa porta dona Rosalina fez um comício que, mesmo contando os discursos do sr. Maurício de Lacerda na Primeira República e os piores artigos dos falecidos senhores Mário Rodrigues e Antônio Torres produzidos sob o mesmo regime, foi das coisas mais violentas que já disseram em público neste país. O café da esquina se esvaziou; automóveis, caminhões e um grande carro da Limpeza Pública estacionaram na estreita rua. As duas mocinhas, baixando as louras cabeças, choravam humildemente.