Casa do Barão de Vassouras - janela da sala para a varanda, rua Barão de Vassouras-Centro, Vassouras-RJ, década de 1970/ Foto de Augusto Carlos da Silva Telles/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Sempre que se mudava para uma casa nova, a primeira providência que Paulo Mendes Campos tomava era instalar os instrumentos de trabalho ao lado de uma janela: “mesa, máquina de escrever, dicionários, paciência”, além de cacarecos e bibelôs, como uma galinha de barro, um Buda de marfim e três cachimbos que pacientemente o aguardavam virar um “homem tranquilo e experiente que fuma cachimbo”. As janelas, ressalta, fazem parte do trabalho do escritor. Sem elas, “a literatura seria irremediavelmente hermética, feita de incompreensíveis pedaços de vida, lágrimas e risos loucos, fúrias e penas”.
Por isso, Paulo prezava por todas as janelas que teve na vida, guardando na memória “um sortido patrimônio de paisagens”, e nenhuma delas tinha sido mais generosa e plena do que a registrada na crônica “Minhas janelas”, espécie de inventário sentimental dedicado a esses vãos de parede emoldurados.
Para uma criança, uma janela não passa de uma janela. As do seu tempo, um tempo de casas e quintais, só chegavam “à janela em dia de chuva, amassando o nariz contra a vidraça, para ver o mistério espetacular das águas desatadas” e “as poças onde os moleques pobres e livres podiam brincar com euforia”. Só à medida em que “ganhamos corpo e tempo vamos aprendendo a conhecer a importância das janelas”.
Janeleiro já experiente, antes de partir de mudança daquele apartamento em Ipanema, o cronista se deteve por mais um minuto diante da “mais vivificante de todas as janelas” que já desfrutara. Aqueles telhados de limo, as árvores e as gaivotas, os barcos e as ilhas, aquele trágico mar noturno e aquele mar cheio de luz só foram também seus por graça daquela janela. Fosse em outra parede, ou mesmo em altura diferente, seria outra a memória que levaria daquele apartamento, mais um em suas andanças pelo mundo.
É de uma janela panorâmica que José Carlos Oliveira contempla uma violenta ventania a agitar o mar e erguer “em fumaceira a terra dos campos de futebol do Aterro”. Os postes, longos e finos, “se torcem e balouçam numa fragilidade de bambus”, e “as coifas dos coqueiros estão loucas”, aceitando eriçadas o convite que o vento faz para dançar. Nesses momentos “nosso sistema nervoso pressente a felicidade”: “Sinto-me tão gratuitamente feliz”, escreve o cronista em “Guache para Zoé”, “que, se tivesse um assunto, seria capaz de produzir agora uma obra-prima”. Mas a beleza do momento é justamente “sua gratuidade feérica, sob o céu de um azul esmaecido e sereno”. Não há nada a racionalizar, nada a fazer senão testemunhar, da janela panorâmica, aquele “espirro da Natureza”. Logo o mar serena, os coqueiros “despertam, fatigados, de sua convulsa balalaica”, os postes estão de novo rígidos e a tarde volta a girar nos eixos, como se nada.
Antônio Maria considerava “de principiante isto de o cronista escrever que está numa janela de hotel, vendo a noite e fumando um cigarro”. E, no entanto, lá estava ele encostado numa janela do bairro de Boa Viagem, no Recife, fumando um cigarro à noite, como se lê na clássica crônica “A noite é uma lembrança”.
“Eu vim à janela porque conheci uma moça e estou preocupado em como a venho pensando”, confessou. Em seus cabelos, suas mãos, seu silêncio e em sua palavra vagarosa, “que perguntava de vez em quando sobre uma verdade já velha”. No geral, só se escreve assim de alguém quando sentimos “uma dessas súbitas emoções” parecidas com o tal amor à primeira vista. Mas não era bem o ímpeto das paixões que comovia o cronista, e sim a possibilidade de se perder numa mulher, “de descoberta em descoberta”, sem a menor desconfiança de estar amando-a, “em qualquer das maneiras antigas ou atuais de amar alguém”. Afundar-se em seus mistérios e, “no tempo em que procuramos desvendá-los”, só encontrar dúvidas.
“Cá estou, porém, nesta janela que não me deixa mentir”, escreveu Maria, “a repassar lembranças de uma moça que, de mim, se muito recordar, recordará meu nome”. Ele também vai esquecê-la mais adiante, mas aquela noite ainda era o momento de “sofrê-la um pouco”, madrugada adentro. Já tinha passado da hora de ir se deitar, mas não seria direito ir para a cama naquela condição: “numa moça, a gente pensa na janela”.